📚 “Uma segunda pessoa” (Milton)

UMA SEGUNDA PESSOA

Milton Maciel

 

VocĂȘ fica uma manhĂŁ inteira na frente de um prĂ©dio, gelando dentro de um carro velho. Frio desgraçado. Mais desgraçado ainda Ă© o pançudo deles, que nĂŁo sai pra tomar seu trago nem com reza braba.

PĂŽ, relaxa, cara. Ele vai sair, sempre sai, o cachaceiro; Ă© sĂł uns dez minutinhos, super irregular, mas o gerente permite. Sogro dele. Nada oficial, claro, o gerente anda faturando a filha do velho, ele sabe, todo mundo sabe, vocĂȘ sabe.

VocĂȘ sabe porque se deu ao trabalho de investigar a vida desse borra-botas antes. Um vagal. Aposentado, com uma merreca mĂ­nima, sustentado por duas filhas. Tava sĂł na cachaça e no bem bom, quando a filha gostosa começou a dar pro gerente do banco onde trabalham, esse aĂ­ em frente. AĂ­ descolou um trampo pro coroa, um trampo de segurança.

Segurança, veja sĂł! Um inĂștil daqueles, se tiver que empunhar um revĂłlver e atirar, fura o prĂłprio pĂ©. Se encarar um assaltante, se borra todo. Segurança… O que um rabo de mulher nĂŁo faz com a cabeça de um homem. Gerente panaca. Casado, Ă© claro.

Mas aĂ­, enquanto espera o pau dÂŽĂĄgua sair pra tomar a sua da manhĂŁ, vocĂȘ nĂŁo tem o que fazer. DaĂ­ que começa a pensar na sua prĂłpria vida, esse esgoto…

VocĂȘ olha pra sua cara no retrovisor do carro, espelho mixa, pequeno. Queria um grande agora.

Ora, Ă© sĂł imaginar que vocĂȘ estĂĄ na frente do espelho grande do seu quarto. Olhe sĂł o espetĂĄculo que vocĂȘ vĂȘ. Fala sĂ©rio!… Um espetĂĄculo de desastre. JĂĄ viu como vocĂȘ estĂĄ ficando cada dia mais feio?

TambĂ©m, pensa bem, quem Ă© afinal esse pilantra que vocĂȘestĂĄ vendo aĂ­? JĂĄ pensou se todo mundo conhecesse a sua verdadeira histĂłria? Os podres, aqueles que conseguiu esconder do todos, mais aqueles que uns jĂĄ souberam, mas esqueceram. Ou os caras jĂĄ morreram… ainda bem.

VocĂȘ olha no espelho e… poxa, sem enrolação, vocĂȘ estĂĄ vendo um cara honesto? No duro? Que nunca mentiu, que nunca traiu ninguĂ©m, que nunca fingiu, que nunca prejudicou ninguĂ©m? Fala sĂ©rio! O que vocĂȘ vĂȘ Ă© sempre um pilantrinha que se deu mais ou menos bem, geralmente mais menos do que mais mais.

NĂŁo, olhe bem pra cara esquisita do sujeito do espelho. Olhe dentro dos olhos, como quem lĂȘ na alma. E aĂ­? Tudo limpinho, se vocĂȘ escrever a sua autobiografia dĂĄ pra contar tudo? Tudo mesmo? Fala SĂ©rio! Seu santinho do pau oco…

Bom, deixa para lĂĄ, aĂ­ vem o bebum reabastecer o tanque. AtĂ© que enfim. É contar dez minutos, tĂĄ super cronometrado, mais de uma semana de campana. Hora de vocĂȘ cair fora do carro. Ação!

Faz tempo que vocĂȘ cansou de ser bonzinho, de ser essa mediocridade ambulante, esse cara que se vĂȘ nos espelhos todos do mundo. NĂŁo deu pra ganhar dinheiro por bem? EntĂŁo vai por mal.

VocĂȘ entra no banco e repete os mesmos passos jĂĄ ensaiados tantas vezes. Faz duas semanas que vocĂȘ vem nesse mesmo horĂĄrio e deposita sempre 50 reais na sua conta. Os dois caixas jĂĄ cumprimentam vocĂȘ, jĂĄ sabem o seu nome. Sorriem, os babacas.

A guarita do segurança estå vazia, é claro. A sirigaita do gerente, filha do velho, estå ali de pé junto à mesa do amante, toda sorrisos também. Rebola.

VocĂȘ escolheu a moça do caixa 2. TĂĄ na hora, enfim! AĂ­ vocĂȘ tira o revĂłlver do bolso, imitação perfeita de trezoitĂŁo, tudo plĂĄstico, alarme nĂŁo detecta. SĂł que ninguĂ©m tem peito de pagar pra ver: e se for de verdade?

Ela estĂĄ branca de medo, quase verde. Isso, pegando pelo rabo de cavalo dela, faz a sujeitinha sair pra fora do balcĂŁo, Ă© sua refĂ©m. SĂł tem mais um cliente, Ă© mandar o gerente panaca, a sirigaita dele, todo os funcionĂĄrios, pro banheiro. Trancados. Sabem, que se gritarem, o gerente morre. Sim, porque o bestalhĂŁo vai com vocĂȘ pro cofre, Ă© claro.

Tudo muito bem pensado, planejado. De dentro do jaquetĂŁo verde vocĂȘ tira o enorme saco de plĂĄstico preto reforçado, 50 litros. O gerente se apressa, pega o maçÔes de dinheiro, vocĂȘ nunca gostou tanto de ver alguĂ©m lhe encher o saco.

Pronto, gerente trancado no cofre, pessoal trancado no banheiro, todo mundo quietinho, tudo nos conformes. Quem disse que assaltar banco é difícil, é perigoso? Oito minutos, ainda faltam uns dois pro pançudo voltar.

Como se tivesse que ter medo daquele imbecil…

É sĂł sair com calma da agĂȘncia, entrar no carro estacionado exatamente em frente, virar na primeira Ă  direita, deixar a latavelha e o jaquetĂŁo verde na primeira esquina, sair dali na moto deixada lĂĄ.  É, irreconhecĂ­vel – caso algum babaca tente descrever vocĂȘ na boa.

Olha sĂł! Pra sua surpresa, o velho pançudo voltou um pouquinho antes. Ele entra no banco e vem com uma segunda pessoa. O segurança entende logo o que se passa, agĂȘncia sem ninguĂ©m, vocĂȘ com a ‘arma’ na mĂŁo. Como vocĂȘ esperava, o velho se apavora de medo, treme ostensivamente, implora pra vocĂȘ nĂŁo atirar. Covarde!

Bem, vocĂȘ nĂŁo quer matar o infeliz, sĂł quer sair em paz com a sua grana. Faz sinal para ele jogar o cinto com a arma no chĂŁo. A segunda pessoa, uma mulher – vocĂȘ nĂŁocontava com uma segunda pessoa! – essa nĂŁo parece apavorada. AtĂ© fala pro velho:

– Deixe que eu tiro pra vocĂȘ, pai – e abre a fivela do cinto, ficando com ele na mĂŁo.

VocĂȘ pensa: “Filha? Ah, a mais velha, a que Ă© PM. A que Ă© PM??!”

A filha mais velha Ă© PM, estĂĄ sem farda, mas Ă© PM, vocĂȘ sabe. E compreende que ela estĂĄ muito calma quando vĂȘ que ela tirou o revĂłlver do pai do coldre e estĂĄ apontando pra vocĂȘ. E ela estĂĄ sorrindo!

E agora? Puxa, a mulher tem uma arma de verdade, a sua Ă© de plĂĄstico. VocĂȘ tenta ganhar no grito, aponta sua imitação para o pai dela, ameaça, a distĂąncia Ă© menos de quatro metros.

O barulho nĂŁo Ă© agradĂĄvel, assusta, mas a luz que sai do cano atĂ© que Ă© bonita. VocĂȘ sente uma tijolada no peito, vem a queda pra trĂĄs.

Agora vocĂȘ estĂĄ estatelado no chĂŁo. Puxa, vocĂȘ nĂŁo contava com uma segunda pessoa... O bom, ao menos, Ă© que nĂŁo sente dor alguma.

AĂ­ vocĂȘ nĂŁo vĂȘ mais nad…

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