📘 “Sessão da saudade de Guiomar” (Paulo)

Falar sobre a Acadêmica Guiomar Beltrão Ferreira é voltar a um tempo de delicadeza, de poesia, de humanidade.

Filha de um homem de letras, o magistrado e poeta Gilberto Gutierrez Beltrão, permaneceu unida à memória e ao trabalho desenvolvido por seu pai, tanto quanto ao legado literário por ele deixado. Um exemplo pode ser considerada a obra “Centenário de Gilberto Gutierrez Beltrão”, uma das 07 publicações escritas por Guiomar, afora as diversas menções à figura paterna que podem ser encontradas em outros de seus trabalhos.

Foi na cidade paranaense de Tibagi que Guiomar veio à luz, a 25 de agosto de 1924. A belíssima descrição desse momento não poderia ocorrer de forma mais sensível do que no texto em que explica a origem do nome de um de seus mais importantes livros, “Glicínias de Agosto”. Nele, Guiomar uniu de forma poética um diálogo mantido com seu pai e, ao explicar a motivação para o nome de sua obra, acabou por nos transmitir um momento, um fragmento que se prende ao seu próprio nascimento. Diz o texto:

“Diversas pessoas perguntaram-se o porquê do meu livro chamar-se de ‘Glicínias de Agosto’.

Meu querido e saudoso pai Gilberto Gutierrez Beltrão numa manhã clara e muito linda, colocando de leve as suas mãos sobre o meu ombro, falou delicadamente: ‘- Guiomar, um nome sugestivo para o seu livro; vamos batizá-lo!’ A luz iluminava o seu semblante bondoso.

‘Vamos dar um nome “Glicínias de Agosto”!’ – Por que papai, chamou-o assim? Perguntei-lhe em tom suave.

Respondeu-me naquele modo seu: – ‘Você Guiomar, é nascida no dia 25 de agosto, comemorado dia do soldado.’ Apertando as minhas mãos falou: – ‘Minha filha, quando você nasceu era uma linda noite de luar, as laranjeiras estavam floridas, e o perfume sentia-se em todo lugar. No casarão em que você nasceu existia uma varanda, e as glicínias floresciam lindamente no mês de agosto’.

‘Guiomar, o livro que você escreveu são crônicas, tem a forma de cachos. Vai ficar sugestivo esse nome, minha filha: GLICÍNIAS DE AGOSTO.’”

Casando-se com o médico Dr. Walter Ferreira, de saudosa memória, o casal fixou-se em 1942 em Joinville, que se tornou a cidade que ambos adotaram como sua. Aqui seu marido desenvolveu com brilhantismo a atividade médica, e o fez durante 58 anos, muitas vezes junto a pessoas carentes e sem nada cobrar. E aqui Guiomar atuou como parceira incansável do marido, auxiliando-o no atendimento às pessoas que o procuravam, nos mais diferentes dias, horários e locais, tornando também seu o sacerdócio do marido. Nas palavras dela própria: “ambos viram Joinville crescer e cresceram juntamente com ela”. Guiomar sabia se colocar no lugar dos que sofriam, sabia dar o necessário conforto, tornando mais suaves as situações mais difíceis. Sabia, enfim, agir com humanidade. E unindo a memória histórica ao trabalho exemplar do marido na área médica, publicou uma valiosa obra que resgata nomes e fatos da medicina local, intitulada “Memória Médica – Dr. Walter Ferreira”.

Como memorialista, reuniu também dados e informações sobre seu passado, de sua família e da cidade que passou a amar – Joinville -, produzindo seguidos trabalhos que não só sintetizavam esses momentos extraídos de um tempo que se tornava distante, como também contribuíram para que se perpetuassem aqueles nomes e fatos. Ilustram essa sua vertente as obras “Passado-Presente 151 Anos de Joinville” e “Colcha de Retalhos”.

Mas a poetisa Guiomar, autora de “Joinville Cidade das Flores”, não se limitou a aliar sua invejável memória pessoal aos dados históricos que coletava. Em seus relatos, não raras vezes Guiomar os transmitia acrescidos de algum poema de sua autoria e que dedicava à pessoa ou à situação retratadas.

Pedagoga, formada por uma instituição de ensino joinvilense, com habilitação em supervisão e orientação escolar, atuou como professora nos ensinos fundamental e médio, além de lecionar por 14 anos no ensino supletivo, vindo a se aposentar na área do magistério. Além disso, como patriota que era, sempre valorizando as cores do seu país, ministrou aulas de civismo ao povo local no Centro de Cultura Feminina de Joinville: e certamente não poderia ter sido diferente, considerando que nasceu no dia 25 de agosto, consagrado como o “Dia do Soldado” em homenagem ao nascimento do Patrono do Exército Brasileiro, o Duque de Caxias.

Aos alunos, que ocuparam parte importante de sua vida e de sua carreira, deixou-nos um poema, intitulado “Aos meus alunos”, que reflete com sensibilidade o sentimento que a unia a eles:   “E a estrela brilhando,

No céu encantado,

De raro fulgor.

Até os passarinhos,

Implumes nos ninhos,

Falaram de amor”

 

E a turma querida,

Preparados para vida,

Como pássaros amenos,

A todos sorriu;

Mas ela, a sua professora

Na madrugada do dia

Contemplava o orvalho.

 

Colheu-a na haste,

De um livro partido

De um livro ferido

Por um vendaval.

 

E vêm outros dias,

Auroras tardias

E fins de luar,

E a vida passando

E nada ficando

Para os sonhos meus.

E a alma a chorar

O pranto do adeus!

 

Sai nuvens infinitas

De cores tão lindas”

 

É a estrada que vai

Sumir lá distante

Levando radiante

Seu último ai…

 

Num raio de luar, irei fazer a prece

De um sonho de criança a devoção

É o perfume da rosa que enternece

No sol da primavera, o coração.”

 

Mas Guiomar era incansável! E, em 1969, seu amor às letras e a Joinville encontrou um feliz enlace. Naquele ano, o então prefeito da cidade, Dr. Nilson Wilson Bender, designou uma Comissão Organizadora visando a fundação e instalação da Academia Joinvilense de Letras (a “AJL”), como pioneira dentre as das demais cidades catarinenses, guardiã da literatura e da língua vernácula. A Academia era um sonho que se iniciara quase uma década antes na cidade, quando aqui se tentou criar um Centro de Letras ou de Cultura, sem êxito. Contudo, naquele final dos anos 60, a administração municipal voltou-se com vigor para o apoio às letras e às artes em geral, formando-se um ambiente propício para que, dessa vez, a Academia viesse à luz.

E veio, através da atuação daquela Comissão, cuja presidência fora confiada ao escritor e historiador Adolfo Bernardo Schneider, e da qual Guiomar tomou parte, inclusive estando presente na fase de reuniões preparatórias que ocorreram nas semanas que antecederam a instalação da Academia.

Não obstante as várias personalidades que tomaram parte daquelas primeiras reuniões, quando da fundação da Academia, a 15 de novembro de 1969, apenas 14 nomes constaram como fundadores. A exiguidade do tempo e as dificuldades de comunicação da época impediram que o quadro de fundadores restasse completo naquele momento inaugural. Contudo, os anos passaram e, em 1972, uma cerimônia histórica integrando os membros das Academias Catarinense e Joinvilense de Letras deu posse a novos 25 membros, elevando a 39 o rol de fundadores do nosso Sodalício. E Guiomar estava dentre eles.

A autora da premiada obra “Tertúlia”, que se tornara sócia-correspondente do Centro de Letras do Paraná, da Academia José de Alencar, do Centro Feminino de Cultura do Paraná e de outras entidades, a escritora que teve seu nome incluído no livro “Indicador Catarinense”, tornou-se, enfim, parte de um grupo de 39 intelectuais que ousou, em 1969, dotar Joinville de um espaço que resgatasse as letras do nosso passado e estimulasse os novos autores.

Contudo, os anos que se seguiram assistiram a uma retração das atividades acadêmicas, com o falecimento de membros, a eterna busca por uma sede e a dificuldade de se manter a todos reunidos para as pequenas e grandes decisões. Com isso, a partir da década de 80, a Academia entrou em um longo período de adormecimento…

Inativa estava, mas não extinta! E em 2013, quando dos 39 fundadores somente 9 ainda estavam entre nós, uma Assembleia Extraordinária decidiu que a Academia Joinvilense de Letras não deveria – nem poderia – ser extinta, mas sim reativada, retomando suas atividades e cumprindo com os fins a que se destinava. E desse grupo que decidiu pelo reerguimento da AJL, estava Guiomar Beltrão Ferreira, que assinou a Ata respectiva, manifestando, assim, sua concordância com a iniciativa que se estava produzindo.

Dela minhas memórias voam para diferentes períodos. Desde o meu nascimento, em 1967, na antiga Casa de Saúde Dona Helena, hoje Hospital Dona Helena, cujo médico que assistiu minha mãe e que foi meu pediatra durante toda a infância foi, não outro, senão o Dr. Walter Ferreira. Lembro com clareza que, ao menor problema de saúde, meus pais telefonavam ao Dr. Walter e lá íamos ao seu consultório ou ele prontamente se dirigia à nossa casa, conduzindo seu inesquecível Dodge Dart. Por vezes, contudo, dirigíamo-nos a sua casa, então à Rua Saí, ou mesmo na casa de Barra Velha, pois veraneávamos todos no mesmo balneário, ocasiões em que Da. Guiomar nos atendia de forma gentil e alegre, enquanto o marido se preparava para o atendimento. E eram momentos de grande informalidade, onde Dr. Walter e Da. Guiomar discorriam com ternura e orgulho sobre os filhos e, mais adiante, sobre a chegada dos netos.

Os anos passaram e minha memória dá um salto para 2006, época em que estive na vice-presidência da Sociedade Cultural Alemã de Joinville e, em um dos “Domingos Musicais” lá realizados, evento de caráter musical e cultural, contamos com a presença de Da. Guiomar para o lançamento de seu livro “Colcha de Retalhos”, que guardo comigo.

Novo salto no tempo e chegamos a 2013 quando, na busca pelo destino dos 39 Acadêmicos fundadores da AJL, telefonei para sua casa e, em contato consigo e suas filhas, obtive a certeza de que era seu desejo ver a Academia reviver. Na impossibilidade de Da. Guiomar comparecer à Assembleia Extraordinária que decidiu pela reativação da Academia, levei o livro-ata até sua casa onde colhi sua assinatura na Ata respectiva e, entre muitas memórias e envoltos pela alegria do momento, ouvi de Da. Guiomar a recitação de alguns dos seus poemas. Um momento mágico que foi coroado com uma fotografia que fizemos daquele encontro.

Em 2014, comemorando seus 90 anos de idade, estive também em sua casa munido de algumas flores, que deixei aos cuidados de sua filha, em nome da Academia, eis que Da. Guiomar já se encontrava com a saúde debilitada e acamada.

Por fim, em 2015, tencionávamos reunir alguns dos Acadêmicos para uma visita e uma homenagem no seu aniversário de 91 anos, mas quis o Bom Deus que nossa Acadêmica Guiomar Beltrão Ferreira fechasse seus olhos 5 dias antes daquela data.

Costuma-se dizer que a imortalidade dos membros de uma Academia de Letras prende-se ao fato de que seus nomes e suas obras jamais serão esquecidos, já que seu corpo é, obviamente, mortal. Com efeito, pode-se dizer que há duas mortes: a primeira é a morte física em si, e a segunda se dá quando o nome de uma pessoa é pronunciado pela última vez. Através da presente Sessão da Saudade, a Academia Joinvilense de Letras está não só ratificando a imortalidade da Acadêmica Guiomar Beltrão Ferreira, como também confirmando o fato de que, para nós, é impossível pronunciar seu nome pela última vez.

 

Paulo Roberto da Silva

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