A criança que me habita (Salustiano)

A CRIANÇA QUE ME HABITA

A vida era feita doce e era bom. Ah, como era!

Traduzia-se em lauto banquete na manhã fria, apenas amendoim cru no café quente e pão com manteiga, acarinhados no sorriso da vovó. Ou aventuras gigantescas, como escalar o minúsculo pé de goiaba, soltar os braços e adernar velas ao vento, velejando rápido para as  Mil e Umas Noites, ou navegando nas monções do Reino de Sião.

A cada travessura um dia novo, não importava ser bandido ou mocinho, escaramuças transformadas em batalhas épicas se desenrolavam sob a impenetrável armadura de papel e espada de sarrafo, cavaleiros alados criando heróis contestáveis em discussões e hematomas, rapidamente finalizadas no lanche de pão com morcilha.

Após pega-pegas esbaforidos nos deitávamos na grama para assistir desfiles de bichos no algodão das nuvens, a ingenuidade a procurar milhões de outros mundos, tão reais quanto nossa imaginação.

E o futebol… Copas do mundo disputadas em tardes de sol, Pelé, Tostão e Jairzinho correndo loucos comemorando esbaforidos. Trovoadas não impediam campeonatos de grandes times no lamaçal do campinho, tingindo de ocre nossos vistosos uniformes: camisetas esburacadas e calções repletos de remendos multicoloridos. Jogavam o gordo, o vesgo, o dentuço, o negão, apelidados que éramos pela inocência de não ver defeitos.

Mas havia tarefas árduas, que nos roubava das aventuras e deixava os doze trabalhos de Hercules para trás: espantar passarinhos dos pés de alface ou trazer lenha para o fogão, sempre aceso na espreita das brasas convidativas para banana assada.

Na contagem do espólio de fim do dia o arranhão no braço se remediava com colo e o ralado do joelho era curado com beijo. Se após o banho de bacia dosado na chaleira fumegante ainda restasse ardido de ferida, um leve assopro possuía magia de cura. Nessa hora, maternais chineladas desferidas quase sempre de raspão, eram esquecidas e abraços selavam reconciliação.

O rádio era ligado no mudo de nossos olhares, perscrutantes ao escutarmos a Voz do Brasil. Imponência de longínquas vozes ecoavam na sala ornada com sofá de tecido forrado com tapete de remendos. O mundo adentrava no desconhecido de nossas mentes multiplicando imaginários tecidos pela pureza que nos permeava.

No macio da palha de milho que guarnecia a rústica cama saltavam histórias do livro colorido de capa dura, dragões pululavam no bruxulear da lamparina, espadas certeiras arrancavam corações maldosos e libertavam princesas aprisionadas, enquanto os olhos semicerrados tentavam acompanhar o passo do príncipe na floresta. E na melodia de ser criança o interlúdio renascia perpétuo em novo dia, quando tudo despertava no novo que surgia, isento de preocupação, repleto de magia.

Pena descobrir que crescer é ver o mundo mau, onde pureza se negocia com cobiça, onde inocência sucumbe ao egoísmo. O desejo infantil de crescer vai sendo minado nos arranhões impingidos ao coração. Pena é descobrir que as feridas proferidas causam mais dor, deixam mais cicatrizes, que os ralados de nossa infância.

Por isso a criança que me habita clama para se redescobrir criança, acreditar na magia do bem, clama para que a bondade prevaleça sobre o mal, clama para acreditarmos que felicidade é perto,  é caminho.

Salustiano Souza

Outubro/2021

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