A São Pedro de Alcântara da minha infância e adolescência( Irmã Clea)

 

A São Pedro de Alcântara da minha infância e adolescência 

Irmã Clea

 

190 anos da História de São Pedro de Alcântara!

Entrei nessa história em 1926. Faltavam três anos para a celebração do Centenário, cuja grande marca foi a inauguração solene da nova igreja matriz. Belíssima, com sua imponente cúpula lembrando Roma. Inconfundível cartão postal – de qualquer ângulo.

Falar da São Pedro de Alcântara da minha infância e adolescência será falar da “colônia” bilíngue, da dualidade linguística de um pequeno rincão catarinense marcado por morros à direita e à esquerda e permeado pelo pequeno Maruim que, a certa altura, se exibia num modesto salto – tão imponente então!

Da minha velha Varginha em que nasci e me criei, onde vivi meus primeiros 15 anos, a lembrança sempre viva é a da velha escola de madeira, carcomida pelo tempo, com janelas sem vidro – abençoada Escola Paroquial alemã, em que entrei aos 6 anos e aprendi a ler e escrever no alfabeto gótico, hoje não mais ensinado. Éramos uma colônia alemã, falávamos no dia a dia o dialeto do “Hunsrück”, região de origem da maior parte dos imigrantes pioneiros de São Pedro de Alcântara. Mas foi a perfeita iniciação no alemão clássico – leitura e escrita – que nos abriu a porta ao vasto mundo da cultura, e não só alemã. Para mim, fez toda a diferença.

Da minha Alta Varginha lembro também, como não, do primeiro longo e penoso caminho, em parte, no início, um atalho pelo mato, até a “freguesia” – São Pedro. No alto da colina, a majestosa igreja, que nos aguardava e acolhia. Era a atração. Amei a liturgia pré-conciliar, amei o latim. A simples menina do interior ali captou a beleza ímpar da música gregoriana, sobretudo no canto do Prefácio e do Per Ipsum (Por Cristo…). Nas Missas solenes, a rica sonoridade também do nosso “coro misto”, famoso.

Mas ir a São Pedro aos domingos – outro caminho, longo ainda, mas mais ameno – nem era só para cumprir o preceito dominical: ali havia a Praça, havia o comércio aberto para atender a quem vinha de longe e aproveitava para alguma compra necessária, ali era o espaço social para o encontro com conhecidos e amigos, para o início de algum namoro.

Sim, havia a Praça, com o Monumento aos Imigrantes, junto ao qual se celebrava o “Dia do Colono” – 25 de julho. Era uma grande concentração das escolas, de perto e de menos perto: assim como íamos nós, da nossa Varginha, pés descalços (todos? a grande maioria?? – primeiro sapato só na Primeira Comunhão!), assim vinham os alunos dos vários arredores: de Santa Filomena, do Louro e Santa Maria,  do Rachadel  do professor Amâncio Konrat, e das demais escolas do lado do Alto Biguaçu da paróquia de São Pedro. Uma festa! Um ano declamei uma poesia em alemão, da qual a memória apenas gravou o primeiro verso: “Sie kamen  mit Frauen, mit Kindern und Karren…” (Vieram com mulheres, com filhos e bagagens); outro ano fui com uma grande boneca (emprestada, claro!): “Minha boneca está dormindo, está sorrindo porque é feliz; sonha decerto com as lindas coisas, maravilhosas, do seu país. Ela é francesa, loura e rosada, foi educada mesmo em Paris”…  Influência da cultura francesa!

 

Momentos da transição da “colônia alemã” para a realidade brasileira – a reviver contando.

Nós éramos uma colônia alemã, éramos as pessoas “de origem” (dizia-se), “brasileiros” eram os outros, os que falavam português.

Vivi essa passagem na minha escola da Varginha. Em prédio novo, de material, do outro lado da estrada, com professora nova, a Escola Paroquial alemã tornou-se a Escola Isolada Pública da Varginha, onde aprendemos o novo alfabeto, com três letras a menos: k, w e y, que o português não precisa. Mas também aqui um espaço de transição: era preciso aprender português. E tivemos a experiência, talvez única, por algum tempo, de uma escola bilíngue(que luxo!): um dia, tudo alemão, outro dia, tudo português! Assim, semana após semana.  Era vocabulário, leitura, ditado, sentenças, composição (!), tabuada, orações e cantos – tudo em duas línguas! Método empírico: Aprender fazendo. Que legado de cultura!

E lembranças se fazem gratidão: Dona Adelaide Zimmermann Petry, recém-casada com o jovem da Varginha, Domingos Petry, (mãe de Dom Augustinho Petry, bispo emérito de Rio do Sul, e de Irmã Maria Rosina Petry – minha co-Irmã da Divina Providência),  a primeira grande mestra que me colocou os alicerces para a riqueza da língua e literatura e cultura alemã; e Dona Olívia Koerich (da Silva), a jovem professora dos dois idiomas, depois do só português, que me fez sua pequena auxiliar, porque eu não queria sair da escola aos 9 anos – com tudo já aprendido… Meu primeiro estágio na carreira do magistério!

Na paróquia, a dualidade da comunicação perdurou por décadas: na missa em latim, o evangelho era lido em duas línguas – um domingo com o destaque para o alemão, outro domingo para o português, seguido então pela “prática” (sermão – homilia hoje!) na mesma alternância.  Assim também os cantos e as orações do povo. Razão concreta, e consequência: no domingo alemão iam as pessoas que falavam só, ou também ainda, o alemão; no outro, sempre mais, quem só, ou já, falava português.

Momento especial da vida paroquial em que se destacava fortemente a diferença linguística era a preparação para a Primeira Comunhão. Fui ainda do grupo da “doutrina” (catequese – hoje: Iniciação à Vida Cristã) com o Catecismo alemão, bem grosso (tive a fama de sabê-lo todo de cor!). O grupo “brasileiro” usava o Pequeno Catecismo do Pe. Jacó Slater.

Também a iniciação na Sagrada Escritura eu aprendi e vivi em alemão, como criança: uma vez alfabetizados, o nosso livro de leitura era a “História Sagrada”, esse excelente resumo da Bíblia (a que não se tinha acesso então!): na linguagem bíblica, e com boas ilustrações, conhecemos aí a grande história da criação do mundo e a epopeia do povo hebreu no Antigo Testamento, e, com destaque, todo o itinerário de Jesus Cristo na terra, no Novo Testamento.

Eu fui afortunada: meus pais tinham em casa as duas versões dessa mini-bíblia -e cheguei a usá-las como primeiro dicionário!

Adolescente de 13 anos, vivi intensamente dois domingos do começo do ano de 1939.

No dia 29 de janeiro houve em nossa paróquia uma grande Concentração de “Congregados marianos” de muitas paróquias, próximas e distantes, com sua fita azul e seus estandartes, saudando com Salve Marias e vibrando ao som do majestoso Hino “Do Prata ao Amazonas, do mar às cordilheiras…”. A Congregação Mariana (hoje CVX – Comunidades de Vida Cristã) era um forte movimento laical da piedade pré-conciliar, muito difundido e acompanhado com entusiasmo por todo o Estado pelo Pe. Emílio Dufner, SJ, do Colégio Catarinense. A grandiosidade dessa manhã de domingo foi a presença, sempre solene, do arcebispo Dom Joaquim Domingues de Oliveira, acompanhado de tantos padres, e de ilustres lideranças católicas, que discursavam em momentos próprios (eu os conhecia de nome através do Jornal “O Apóstolo”). Experiência marcante do mundo grande, da Igreja grande!

Oito dias mais tarde, domingo seguinte, novamente a paróquia era cenário de grande celebração, em dó menor essa vez: Dom Joaquim, o arcebispo, presidia às solenes exéquias do pároco, Pe. Nicolau Schaan, dedicado anfitrião no domingo anterior.  Muitos padres, a paróquia surpreendida com a notícia, muito povo, o coro cantando o cadenciado Requiem aeternam. No sábado, 04 de fevereiro, voltando da tarde de confissões na igreja, a morte colhera o nosso pároco sem prévio aviso, sem longo sofrer. Ao lado da igreja improvisaram-lhe a sepultura. Ali ele inaugurou o pequeno Campo Santo, em que outros padres, nomeadamente filhos da paróquia, hoje lhe fazem companhia.

 

Novo momento de transição

O jovem padre Rodolfo Machado, luso-brasileiro, por pouco tempo nosso coadjutor, assumiu a paróquia, ainda bilíngue, como pró-vigário.

Como ficaria o domingo alemão?

Eis que entra em cena outra história, aliás pouco lembrada em São Pedro: Algum tempo antes tinham vindo à nossa paróquia três (ou quatro?) Irmãs Escolares de Nossa Senhora, diretamente da Alemanha, com a esperança de abrir aí uma escola alemã, o que logo se mostrou inviável. Não era mais hora. Assim, durou pouco a sua presença entre nós. Despediram-se e foram para junto das demais do grupo pioneiro em Forquilhinhas, no sul do Estado, o verdadeiro destino da vinda das Irmãs ao Brasil.

No seu afã pastoral vai agora Pe. Rodolfo, durante a semana, treinar com as Irmãs a leitura do evangelho em alemão. Ao menos isso. Chegava a ser cômico, para quem conhecia ambas as línguas, ouvir alemão em português, palavras alemãs pronunciadas em português.

Pouco depois, com Pe. Rodolfo transferido para Biguaçu, o novo vigário (pároco) de São Pedro vem a ser o Pe. Roberto Wyrobek.

Fim de uma época, de uma paróquia bilíngue!

 

Do alto dos meus 93 anos permito-me voltar 78 anos atrás e colocar mais um subtítulo:

 Minha despedida da São Pedro de Alcântara da minha infância e adolescência

Na madrugada do dia 26 de janeiro de 1942, com meu pai, Lino Fuck, e a bênção de minha mãe, Benta Hermes, e o adeus aos então 9 irmãos, mais velhos e menores, deixei minha velha Varginha, embarcamos no ônibus em São Pedro, meu pai me deixou no Colégio Coração de Jesus, em Florianópolis, e eu segui de tarde com a nova Diretora para o Colégio Espírito Santo, Tijucas, das Irmãs da Divina Providência.

Eu tinha 15 anos. Eu sabia que não voltaria – para ficar.

Ir. Clea Fuck, DP

 

Breve biografia:

Nasci no dia 21 de outubro de 1926. Em São Pedro de Alcântara. Quarta filha do casal Lino Fuck e Benta Hermes. Fui registrada – e batizada (01.11.1926) – como Irene Judith Fuck. Aos 20 anos entrei na Congregação das Irmãs da Divina Providência, em Florianópolis. Passei a chamar-me Irmã Clea, como hoje sou mais conhecida. Profissão-missão: Magistério. De acréscimo: Escritora. Tradutora/intérprete. Desde 1993 resido em Tijucas, Av. Bayer Filho, 1600. Tel.: (48) 9 9986 3339. E-mail: irmacleaf@gmail.com

 

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