Ac. Fiuza leu “A náusea”, de Sartre
“A Náusea” foi o primeiro romance de Sartre, tendo sido escrito antes da Segunda Guerra. A despeito de ser um trabalho de juventude, pode ser considerado uma boa introdução ao pensamento do filósofo, trazendo noção adequada do que é o existencialismo sartreano.
Mesmo tendo tido um enfoque filosófico, trata-se de uma obra literária. O personagem principal é o historiador Antoine Roquentim, jovem culto e viajado, que nos apresenta aqui os seus diários, escritos em momento decisivo de sua vida. Foi quando ele intuiu uma maneira totalmente diferente de compreender as pessoas, de entender o mundo, de perceber a si próprio.
Ele estava então vivendo em uma pequena cidade do litoral da França, onde se isolara para escrever a biografia de um nobre do século XVIII. Passava o dia na biblioteca, no museu da cidade ou nos cafés locais, onde lia, escrevia e pensava em seu trabalho, enquanto observava as ocorrências do seu entorno.
Foi de repente que algo diferente começou a ocorrer com Antoine. Era um mal-estar que surgia ao, distraidamente, olhar para um objeto qualquer ou para um ser vivo. Aquele ser, ou mesmo parte dele, passava a lhe transmitir uma sensação diferente de tudo que já sentira ou percebera. Era como se ele observasse aquele ente isolado, separado de seu contexto. Aí aflorava aquela individualidade, a existência radical. Podia ser só a mão de uma pessoa, que ele percebia em sua brancura e em sua moleza fria. Poderia ser a casca de uma árvore, da qual ele extraia a dureza, o negrume e a aspereza. Ao fazer isto ele sentia o tal mal-estar, que ele chamou de náusea. Era um tipo de enjoo, de vertigem, associado a uma sensação melancólica duradoura. Ele a experimentava quando se concentrava somente na estranheza da aparência daquele ente ou de sua parte isolada, ou ainda na aberração de seus movimentos quando isolados, retirados mentalmente de seu ambiente. Desta maneira ele retrata as mãos dos jogadores de baralho da mesa em frente, mãos poeirentas, inchadas, indo e vindo. Assim ele observa uma mosca pousando no açucareiro, esfregando as patinhas e se fartando. Assim ele passa horas olhando para a raiz de uma árvore, que mergulha no chão em busca de nutrientes, impassível.
Ele imagina o que poderia estar acontecendo, na origem e na sequência de tais movimentos. Acaba por concluir que as coisas acontecem muito mais por acaso que por necessidade. As situações vividas por todos são sempre contingentes. Tudo isto carrega a sensação do absurdo. Provoca o mal estar, a náusea.
No transcorrer do livro ele deduz que os humanos procuraram uma maneira de conviver com esta estranheza. Eles criaram suas histórias. Assim, eles inventaram conceitos como árvores ou florestas e passaram a ignorar aquela árvore específica, cuja raiz mergulhara no solo, bem na sua frente. Criaram a ideia de moscas, de insetos ou de animais e desconsideraram aquela mosca, ali no açucareiro. Inventaram uma categoria que chamaram de homens, para se abstrair daqueles jogadores de baralho. Ele conclui que a identificação que tem de si mesmo é desta ficção, é daquele personagem histórico que ele criou de si mesmo, o que estuda, que viaja, que já teve namoradas. Ele vê nisto um equívoco. Seu verdadeiro ser é unicamente aquele que vive no momento, o que está com fome, o que tem uma coceira na perna.
Ele passa então a questionar a veracidade de suas próprias memórias, considerando-as puramente narrativas, construções semânticas. Ele não seria Antoine Roquentim, o historiador, mas somente aquele que sente, aqui e agora.
Isto carrega a impossibilidade ainda maior de estudar as memórias de uma outra pessoa, o que o faz abandonar a biografia que ele escrevia. Afinal, qual o interesse de escrever sobre alguém que nada mais é que uma personagem de si mesmo?
Assim, o encontro do personagem consigo mesmo ajuda Sartre a entender o que é existência e diferenciar do que é essência. A essência é a história que criamos e a existência, o que de fato vivemos. A existência precede e é a única verdade. E, mesmo assim sendo, é absurda. Conclui que não há sentido na vida.
Ao testar o seu modelo o historiador Roquentim tem ótimas discussões, especialmente com o “Autodidata”, apelido que ele dá a um humanista que ele conhece na biblioteca e que se contrapõe às suas conjecturas, acreditando no homem e em suas ideias.
O livro foi inicialmente recusado pelo editor. Simone de Beauvoir sugeriu que Sartre o reescrevesse, diluindo a aspereza dos conceitos filosóficos e tratando-o de maneira mais literária, romanceando mais. Ele fez isto, levando alguns anos mais para terminá-lo.
Há trechos enfadonhos, mas há momentos brilhantes, em que o leitor se entusiasma com o desenvolvimento das ideias do autor. Eles valem a leitura, com sobra. Foi o primeiro sucesso de Sartre. Seus livros lhe deram a possibilidade de se tornar um pensador independente e engajado, desobrigado de obrigações com a academia e com o sistema.
Resenha feita por Ronald Fiuza, fim do ano 2021