Adeus, companheiros (David)

ADEUS, COMPANHEIROS

 

Ontem à noite, Gabriel, o dono da mercearia-bar Entre Amigos, homem amado, respeitado, mas solitário, depois do último cliente sair, abaixou as portas, conversou tristemente com o papagaio na gaiola, e escreveu a derradeira mensagem aos amigos:

 

“Boa noite, companheiros! Estou com Covid! Se cuidem. Por isso fiquei arredio, distante, para não contaminá-los.

Não bastasse o câncer que me rói silenciosamente, agora o Covid. Azar chama azar. Muita falta de ar. Muitas dores no corpo. Tosse seca, sem apetite. Estou bambo. Maleixo mesmo. Tenho que ir para o hospital. Não quero ser entubado!

Vocês me conhecem. Sou corajoso. Nada temo. Mas ser entubado é a morte certa. Por isso, quando lerem isto, já não estarei mais vivo. Cuidem da Gabriela. Não sei como ela tocará este negócio para sobreviver. Nem vocês, nem ela sabem que o câncer me devora, muito menos este maldito vírus.

Quero uma cerimônia de adeus simples. Sem choros e discursos. Ah, por favor, quero ser cremado. A mercearia está com as contas pagas, mas um lixo, muito suja. Aos que me devem, doem o dinheiro ao Asilo São Vicente de Paula. Uns esqueceram de me pagar, outros porque não tinham condições. Outros, salafrários mesmo. Estão perdoados.

Com o dinheiro da gaveta do caixa, comprem uma roupa decente, pois as que eu tenho estão em frangalhos e não servem para me vestir no caixão. É triste deixar este mundo numa situação como esta. Maldito vírus, malditos chineses, que o esparramaram para o mundo, até que ele bateu à minha porta.

Não fiquem tristes. Guardem o meu sorriso. Estou indo embora. Com um grande sorriso estou indo embora! Um grande abraço a todos. Não fiquem tristes. Estou em paz comigo mesmo.”

 

Releu a mensagem, fixou-a com um alfinete na tábua de carne que estava sobre o balcão, transpôs o umbral que separava a mercearia da casa, foi ao quarto, beijou a mulher que dormia, abriu a gaveta da cômoda, pegou o revólver, carregou-o com apenas duas balas, e foi para o fundo do quintal, e sentou-se num banco debaixo da jaqueira.

A minguante subia sobre o casario, embassada. Hora de minguar, sussurrou.

Acharam-no morto de manhã, o miolo espatifado, um sorriso torto na boca, já com formigas.

 

David Gonçalves

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