As embaúbas morrem em pé (Joel)

As embaúbas morrem em pé
          Joel Gehlen, AN, 8/01/2015

A madrugada de 6 de janeiro é quente e sem estrelas. O mormaço da floresta estende um tênue véu sobre a rua. Grilos raspam vidro moído na borda imaterial da noite, numa romaria de cochichos que acentua o semblante como uma prece. Há um acanhamento de gargantas adormecidas, prestes a se alçar no canto das cigarras. A voz irrompe desacostumada, quase um pigarro que rateia apalpando os timbres até firmar os roncos. E faz-se num crescendo de trens que rasgam o âmago do escuro no seu trajeto de aço ao acaso. Um trem adivinhado no apito longo, fino e estridente das cigarras, fatiando a noite em camadas alternadas de silêncio e grito. Um trem sem trilhos que carrega com o sono para longe, onde rebanhos de nuvens ruminam o amanhecer futuro.

Penso nas noites claras do verão em Moscou, a conversa com o João no café da rua Tverskaya. No meu suburbano matagal joinvilês, os ruídos das cigarras deságuam uma cascata invisível e se acende uma cidade-luz de vaga-lumes em voos fátuos. Acodem-me do sufocamento uns versos do Maiakovski: “Costurarei calças pretas/ com o veludo da minha garganta/ e uma blusa amarela com três metros de poente.” Tenho sede de água bebida no escuro, ao pé da porta, que me inclina o copo e o pensamento para ti.

Recortadas no fundo de um céu cinza e leitoso, as silhuetas de três embaúbas morrem como espantalhos descarnados na borda da mata. São árvores contraditórias, finas, altas, com galhos longos na copada. O tronco forma um mastro comprido, um caniço pouco resistente onde as formigas gostam de fazer morada e beber sua seiva. Lá nas pontas, formam-se cartuchos que dão de comer a morcegos e sanhaços e curam bronquites das crianças. As folhas são grandes e resistentes, alteiam-se numa área vélica propícia para guardar os sete ventos. Com esse perfil, deviam partir-se em meio às ventanias, mas as embaúbas morrem em pé, de velhice, aos sete ou oito anos. Perdem as folhas, os galhos ficam estendidos como braços abertos ao céu. Não são magos, nem reis, mas buscam uma estrela que as guie enquanto vão se desfazendo de cima para baixo, com retidão e altivez. Ainda servem de palco para cigarras e pirilampos enquanto o horizonte prematuro trama as primícias do dia.

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