📓 “O espelho falante” (Lufiego)

O Espelho Falante

Marcelo Lufiego

Neste momento, estou com as sinapses nervosas “funcionando” mais rápido, portanto escrevo diretamente aqui (possibilidade maior de erros de digitação e outros).
Isso acontece-me sempre, quando sou desafiado a transpor os limites do Homo sapiens sapiens para olhar o mundo com os olhos do Homo sapiens simbolicus.
Minha primeira reação é correr a olhar-me no espelho e ver se ele diz alguma coisa.
Acredite, por favor, muitas vezes meu espelho ri na minha cara,
noutras chora copiosamente olhando-me no fundo dos olhos,
ao ponto de, passadas as lágrimas, toda a minha musculatura se sentir descontraída, leve, quase ausente do mundo das sensações cotidianas.
Talvez um dos meus melhores momentos diante do espelho, mas precisa ser o meu espelho, não pode ser outro.
Noutras vezes ainda, fala comigo e quase posso garantir que ele não mente. Eu nunca consegui enganá-lo.

Conversamos. Iniciei falando:
– Espelho cruel, que não engana-me, não ludibria-me, não mente.
Sei o que sou, já disseste-me mil vezes.
– Repete então, homenzinho, o que aprendeste.
– Repito: somos frágeis criaturas cuja vida não é mais que um ponto entre duas eternidades!
Satisfeito espelho meu?
– Jamais estarei satisfeito, porque a imperfeição humana é um mal crônico;
pode, apenas, ser atenuada pela transposição dos níveis de consciência.

Eu continuei:
– Provenho do evento quântico primordial, espelho meu.
O maior de todos os saltos quânticos do lado de cá do espelho do Princípio Criador – que também tem o seu espelho – e que nos observa através dele.
Sim, a ciência ainda está longe de explicá-lo. Atualmente, o modelo cosmogênico prevalente entre os estudiosos é a Teoria do Big Bang.
A física quântica ajuda a entender uma parte disso.
Antes do princípio de tudo, provavelmente do lado de lá do espelho do Princípio Criador, e no que nos concerne, existia a Singularidade.
Uma única partícula concentrando toda a matéria-prima e energia necessárias para a construção de um universo.
– E assim se fez e segue-se fazendo, disse o espelho, e emendou:
– Num dia alegórico, que os concentrados cronometristas especializados em astronomia situam há 13,7 bilhões de anos,
o Princípio Criador deflagrou um colapso cataclísmico sobre a Singularidade, cuja explosão perdura até os dias de hoje e se projeta para um futuro incalculável.
Efetivamente, do pó primordial, genético além da biologia, quântico em potencialidades,
formaram-se todos os corpos celestes:
poeira cósmica simplesmente, ou asteroides, planetoides, satélites naturais, planetas, estrelas, nebulosas, galáxias, aglomerados de galáxias,
superaglomerados de galáxias e o mais assombroso: a energia escura continua impelindo os mundos para regiões cada vez mais distantes do ponto central do Universo.

Sequer precisando respirar, emudeceu, uma das vantagens de ser espelho, e esperou para ouvir-me.
Como praticamos o diálogo, o meu espelho e eu, asseverei com ar professoral para aquela imagem tão querida a minha frente:

– Falo conjecturando que o princípio das potencialidades quânticas seja comum para todos os entes do Universo, sensível e inseparável espelho meu.
O Universo também é um salto quântico e como os seres humanos, também não passa de um ponto entre duas eternidades.
Disse, paralisado, mirando os olhos do espelho, tão iguais aos meus.

Caro leitor, se chegaste até aqui, espero que tenhas paciência para prosseguir. Devo continuar?

Continuando:

– . . . Os caminhos cósmicos que se abriram desde lá são muitos, disse o espelho.
Foram longos momentos de silêncio, durante os quais ocorreram-me os seguinte pensamentos:
Pelo espelho meu é possível navegar por eles.
O mais importante é o caminho de casa, da nossa Terra.
No Universo, de tão vasto, o espaço é tempo.
Do centro em direção à Terra, depois de muito tempo, num processo que o corpo não alcança,
mas que a mente domina embarcada no pensamento, o que é absolutamente suficiente,
chegamos no superaglomerado de Laniakea, nosso continente, por assim dizer, no Universo.
Até o Grupo Local de Galáxias onde residimos são milhões de anos-luz de navegação cósmica,
atravessando um oceano sideral pontilhado por algo em torno de cem mil galáxias, dentre as quais a nossa.
Laniakea, o espaço imensurável, a vastidão sideral, meio bilhão de anos-luz de uma extremidade à outra, nosso primeiro endereço no Cosmos.
Nebulosas, como se fossem nuvens coloridas pintadas no pano de fundo com as próprias mãos do pintor, sem pinceis.
Galáxias de todas as formas compondo um mosaico, que lembra os canteiros de alfaces e pimentões do Vale do Salinas de Steinbeck, vistos da lua pela luneta dos selenitas.
O cientista, depois de batizar-te Laniakea, na língua havaiana, saiu do Observatório Astronômico
e foi olhar-te à noite, deitado sob o manto estrelado, sem lua, nas areias da praia de Waimea Bay.
Adormeceu sonhando contigo e ao acordar, a luz do sol raiando para mais um dia,
os surfistas havaianos, ciosos de sua condição de criadores do surfe,
os surfistas sul-africanos, australianos e californianos, acostumados a reinar absolutos nas ondas abençoadas por Netuno,
se preparavam para aplaudir, dentes meio cerrados, é verdade, o campeão brasileiro Gabriel Medida,
aquele atleta que faz da bandeira nacional uma capinha de super-herói brasileiro, voando sobre as ondas,
fazendo, inclusive, com que os coroas, que agora o aplaudem entusiásticos, tenham saudades do querido Ayrton.

Nobre leitor, prometo aumentar a velocidade.

Pronto, chegamos! Acabamos de entrar em nosso Grupo Local de Galáxias. Agora estamos perto de casa. Apenas dez milhões de anos-luz. Olhe conosco lá fora e oremos:

– Oh Grande Programador do Universo, Princípio Incriado Criador de tudo o que existiu, existe e existirá, eis-nos maravilhados aos teus pés.
Vede conosco, oh Senhor dos Mundos, a tua obra.

A palavra retorna ao espelho, que comanda com voz firme:
– Engenharia, por favor, diminua a velocidade para observarmos o desfile das galáxias.
A estibordo as duas Nuvens de Magalhães, mais uns instantes e passamos pela Galáxia do Triângulo, número 33, magnífica, simbólica, uma alegoria cósmica,
até que enfim, estupefatos, com a corrente sanguínea carregada de substâncias químicas naturais,
a bombordo, para onde todos acorrem, avistamos a nossa casa, a Via Láctea,
e, antes dela, mas muita próxima, Andrômeda, imponente, espiralada, com seus vários braços feitos de estrelas, como se fosse a esposa de Shiva abraçando todos os demônios do mundo, então convertidos em pontos de luz.
Finalizou a frase com o meu sorriso no rosto.
Eu exclamei visivelmente emocionado:
– Finalmente, em casa . . . fico sem palavras e, de fato, devo mesmo atribuir à Hércules uma obra tão grandiosa: nossa galáxia “Caminho de Leite”.
Copiloto da nave com o espelho meu, ordenei à engenharia:
– Piloto alter ego! – Sim, comandante, respondeu rapidamente o engenheiro-chefe. – Vamos direto ao Braço de Orion, nosso jardim de sóis, de girassóis é verdade, pois todos giram no sentido dextrocêntrico a caminho do futuro, cada qual conforme o Sol de sua vida.

E então, o Sistema Solar, os planetas telúricos, a Terra!

– Terra – declamou o espelho meu – matriz do fenômeno da vida, até aqui, em todos os caminhos conhecidos de Laniakea.
Terra, planeta azul! Corpo celeste único ao largo de milhões de anos-luz, formado a partir do pó, transformado no palco ideal para o império dos três estados da matéria.
Um tesouro em biogeodiversidade, um jardim paradisíaco, cheio de feras, entregue ao homem e à mulher.

– No início dos tempos a Terra era um imenso vazio – falei , tomando a palavra – coberto por um imenso oceano vazio, sem vida.
Após centenas de milhões de anos, no diapasão de sua própria enteléquia, a Terra em seu ventre liquefeito
e por força do dobramento quântico de energia, pariu as primeiras formas de vida: protozoários, algas e bactérias.
E o que era uno evoluiu para ser pluri e as águas ficaram repletas de peixes, formaram-se os pântanos, que ficaram repletos de insetos, e os anfíbios foram viver nas praias.
Surgem, então, os répteis. Capítulo que excita e muitas vezes assombra a nossa imaginação com os dinossauros do Jurássico, numa era geológica já bem mais próxima do homem.
De saltos em saltos, dos saltos cósmicos àqueles específicos a determinados mundos e seres, a capacidade quântica, está escrevendo a história do Universo, da Terra e do ser humano.
Um destes saltos quânticos específicos foi o surgimento dos mamíferos, sob a sombra dos gigantescos répteis, vindos, aliás, para substitui-los.
Um salto quântico específico foi a evolução do homem, nos últimos milhões de anos. Indo às origens das origens, de 10 milhões de anos para cá.

Meu espelho rapidamente recuperou a palavra, dizendo:
– No que concerne ao ser humano, especificamente, notamos que os saltos quânticos, que se verificam periodicamente em seu processo evolutivo,
na medida em que o tempo vai passando, apresentam interregnos cada vez menores entre si.
Tive que perguntar:
– Como sabeis dessas coisas espelho meu?
No que respondeu:
– Não imaginas quantos, antes de ti, confessaram para mim todos os seus segredos, sonhos, medos, frustrações e esperanças.
Conheço o que vai no coração e na cabeça do ser humano.

Fiquei rendido. Continues, então, espelho meu:
– Um salto quântico implica em extraordinária qualidade. Implica em intensidade. Os eflúvios esotéricos e os fatores exotéricos precisam convergir para deflagrar o fenômeno.
A pré-história humana, por muito tempo (para os parâmetros do homem e não da geologia, muito menos da cosmologia), transcorreu sob a égide da “Pedra Lascada”, mas tão logo tenha aprendido a polir a pedra, o ser humano aprendeu a plantar (poucos milênios atrás). O que vocês denominam de “Revolução Agrícola” é o mais significativo salto quântico da espécie humana, depois da tomada de consciência acerca da própria inteligência (há milhares de anos). Num primeiro momento, a agricultura, acarretando tempo ocioso, fator que na época nômade de intermináveis deslocamentos em busca do que comer não era possível, permitiu o desenvolvimento da cerâmica, concomitantemente ao da fundição e da arquitetura.

Interrompi abruptamente, para perguntar:
– Em que momento os seres humanos enxergaram as duas faces da arquitetura?
Ele respondeu:
– Apenas a medicina praticada com misericórdia, e o magistério praticado como sacerdócio, podem ser comparados à arquitetura e suas duas faces como emulação para o aperfeiçoamento do ser humano.
Mas para falarmos das duas faces da arquitetura, certamente e em respeito ao tempo, precisaremos encerrar esta crônica e abrir um novo capítulo.
Asseverou com ares de que se retiraria para o vão da inexistência, grota misteriosa na qual se esconde quando dispensa-me de sua presença.

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