Casa do Vovô Neco (Zabot)

CASA DO VOVÔ NÉCO

Oliveira Cercal é destas pessoas de bem com a vida. Percebia-se, claramente, haja vista a calorosa recepção.  Final de dezembro.  Manhã de sol. Calor de rachar. E lá estávamos em visita pré-agendada. Dione, engenheira agrônoma da Epagri, ciceroneia a visita.   Decorre de contatos anteriores: excursão a Morretes para troca de informações sobre o cultivo e processamento de cana-de-açúcar. A propriedade da família Cercal, situada na região do Cubatão, mais precisamente no, hoje, Jardim Paraíso, é bicentenária. Guarda traços do século XVIII. Herculano Vicenzi, já a descrevera em matéria publicada no Jornal Notícias do Dia, sobre a sua relevância, enquanto ambiente do agronegócio. E sobre a família Cercal, protagonistas históricos, presentes na região desde de meados de 1786. Gerações sucessivas asseguraram e asseguram a continuidade das atividades. Uma raridade nos tempos atuais. Tempos modernos, pero no tanto.   E Flávio Cercal não esconde o orgulho:

– Meu neto já se apresentou. Herda o faro do vovô: o fascínio pelos canaviais, especialmente conduzir lavoura sem qualquer tipo de agregado químico.  Apenas reutilizar bagaço de cana, palhadas, ramos e galhadas, e até sobras de poda urbana. Um sistema próprio, deduzimos: o sistema Cercal.

Não há como negar: a cana-de-açúcar está na base da economia brasileira. E Joinville não foge à regra. Embora as limitações climáticas o cultivo de cana-de-açúcar prosperou, redundando na Usina do Duque de D’Aumale, irmão do príncipe de Joinville – uma das mais modernas na época. Equipamentos de última geração foram importados da França. A princesa Izabel em visita a Paranaguá deu uma esticada até Joinville para conhecê-la. O antigo prédio ainda pode ser visto na Estrada do Caminho Curto. Outros alambiques distribuíam-se no território. Segundo Carlos Ficker chegou a meia centena na primeira metade do século XIX; muitos dos quais na zona norte da cidade, com destaque para Pirabeiraba. Alguns resistiram, outros, no entanto, sucumbiram ao longo do tempo. Questão de sucessão e também de legislação, alegam. No Brasil confunde-se produção artesanal de cachaça com produção industrial, em larga escala. Com isso milhares de empregos foram dilapidados e a criatividade, a marca familiar, praticamente exauriu-se. Os que resistem, constrangidos, dia a dia, definham.  Interesse poderosos – e nada amistosos -, infelizmente afrontam a chamada agricultura familiar. Certamente há lugar para todos debaixo do sol. Minas Gerais acaba de reconhecer isso, destaca Rui Scutato, produtor centenário de Morretes. E também vamos chegar lá. Quando não sabemos, mas precisamos nos unir enquanto é tempo. A união de produções gaúchas, catarinenses e paranaenses, com raízes históricas comuns, seria um bom conheço. E Minas Gerais, neste sentido, serve de exemplo.

Voltando ao anfitrião, Flávio Cercal, nos convida para circular na lavoura. E o seguimos enquanto dispara informes preciosos. Verdadeiras pérolas de sabedoria. De altura mediana, parrudo, olhar vivo de caçador de horizontes e de pescaria nas horas vagas no entorno da ilha Grande, onde tem rancho bicentenário. Isso mesmo, mais do que bicentenário. A família Cercal descente de lusitamos que povoaram o entorno da Babitonga a partir do século XVIII. Donos de terras a perder de vista. Ergue os braços e aponta: léguas e léguas de terras. Quem quisesse, poderia usufruí-las sem melindres. De valor algum. Mais importante era ter vizinhos e amigos e, sobretudo, freguesia.

O ganha-pão da família sempre se ancorou no cultivo e processamento de cana-de-açúcar.

Adentramos na área de cultivo. Canavial novo. Recém-plantado.  E mais ao fundo, canavial no ponto de corte, a perder de vista.  Predomina a havaiana, mas há outros cultivares. Inquieto informa: – ainda nesta semana estive em Brusque.  Vem novidade por aí. Para nossa surpresa, a família Cercal desenvolveu uma tecnologia própria. Após tomar conhecimento, a batizamos de sistema Cercal. Pretendemos resgatá-la, descrevendo-a, haja vista sua peculiaridade e, sobretudo, eficiência do ponto de vista da sustentabilidade. Os cercais, percebe-se que, antes de tudo são, não apenas meros exploradores de terras agrícolas, mas, sobretudo, renovadores. Recriadores de solos, de terras revigoradas, portanto. A vicejar, ervas, expressam a refertilização das lavouras.

E reverbera. – Veja bem: aponta para o alinhamento do plantio. As linhas são dispostas no sentido norte-sul de tal forma que possam tirar o máximo de proveito da luz solar. Isso eleva o grau brix, informa, num misto de orgulho. Outro segredo: a espaçamento: 3,4 metros entre linhas. E o plantio em linha dupla, 60 centímetros de distância. Uma vez plantadas, cobre o solo com restos de vegetais, formando um colchão que o protege; preserva assim a umidade, e evita o crescimento de ervas invasoras. A largura entre as linhas permite circular de carroça. Não usa trator, evita assim a compactação do solo, o pior dos cenários, pois impede a oxigenação do solo.  Faz questão de informar: todo o bagaço retorna para áreas de cultivo. Plantamos há mais de duzentos anos nestas terras, e a produção (que maravilha!) só tem aumentado. E, olha, nunca usamos calcário ou adubo, apenas manejamos o solo. Ficamos boquiabertos com o cenário. Digno de registro sob todos os aspectos. Cinematográfico mesmo.

Ressalta: as linhas próximas incrementam o enraizamento, fator que evita o acamamento nas touças. O acamamento, quando ocorre, reduz o rendimento de corte.  Parte significativa da produção destina-se a produção garapa, um bom negócio, informa. Vende onze varas por cinquenta reais.   E saí da lavoura na hora. Natural. Nada de armazenar. Outra porção vai para a produção de melado. Melado de consistência inconfundível. Com certo orgulho, dispara: – Enquanto nossa marca está no mercado, outras não saem.  O ambiente – as instalações -, exalam um aroma de saudabilidade. Provocador mesmo. Tudo está em ordem. Limpeza e higiene primorosas. Por fim, a adega: cachaça envelhecida em barril de araribá.

Informa que vem reduzindo a produção de cachaça pois não compensa legalizar a atividade. O modelo em curso pressupõe investimentos maciços, e produção em larga escala. Concordamos, e ressaltamos a importância de manter a produção artesanal. Afinal, se trata de sistema de produção totalmente orgânico. Padrão Sir Albert Howard tão bem descrito na obra: Um Testamento Agrícola. Este eminente agrônomo inglês provou na Índia e na África que a agricultura orgânica, assentada no emprego de resíduos vegetais, é tão ou mais produtiva do que a convencional.

Na saída, Flavio faz de questão de apresentar os apetrechos e as embarcações de pesca. Hobby preferido, percebe-se. Uma, a maior, apropriada para a pesca da tainha, e outra, a menor, pau para toda a obra. E apresenta o pikufe. Pik Ufe! diz eufórico, mostrando o lado professor pardal.  Na verdade, uma adaptação de batedor de manteiga. Um cabo, e na ponta, na posição perpendicular – uma tábua com furos. Serve para – próximo ao cardume -, bater n’água.  O barulho põe os peixes em fuga, e muitos caem na rede. Quem não tem esse apetrecho, bate com o remo e, de graça, toma um banho.

Por fim, nos agracia com um pote de melado, o  famoso melado: Casa do Vovô Néco – tesouro rubro dos canaviais.

 

Joinville, dezembro de 2018

 

Onévio Antonio Zabot

Engenheiro Agrônomo

 

 

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