Casaco de peles

A mulher entrou na loja e foi direto à vendedora. Era uma mulherzinha baixa, seios pesados, pisadas firmes e determinadas.

– Quero ver aquele casaco de peles da vitrine.

Ver era o modo de dizer. Ela o havia visto e admirado inúmeras vezes. Um casaco bege com estrias escuras. Levara semanas tentando conseguir o valor suficiente para comprá-lo. O marido era pequeno funcionário público, não ganhava muito. Vivia, pode-se dizer, satisfeito em poder esparramar-se no sofá, assistindo aos jogos de futebol nos fins de semana, com uma latinha de cerveja na mão. Aos domingos de manhã saía pelos arredores do bairro com a gaiola do canário pendurada nos dedos. Parava no barzinho da esquina, pegava cervejas e uns pacotes de chips de bacon.

– Para que você quer um casaco de peles numa cidade que não faz assim tanto frio? – ponderava ele – Para ficar embrulhado no guarda-roupa?

Não sabia bem por que se apaixonou pelo casaco. A motivação por certo tinha sido a presença da mulher do chefe do marido numa festa de confraternização no último inverno. A antipática havia aparecido aconchegada num casaco branco, de pela macia, contrastando com a cor morena da pele, e todas ficaram boquiabertas. Ela se sentira diminuída, com aquele sentimento que talvez o marido não tivesse, de subalternidade. Era uma exibição de poder social que ressaltava a distância entre eles. O casaco era um signo de poder, de distanciamento social.

Ela, enfim, atazanou tanto o marido, ao mesmo tempo em que fazia provocações eróticas, desacostumadas após os dez anos de casamento, que este concordou em colocar seu cartão um pouco mais no vermelho.

A vendedora perguntou o tamanho, foi até o estoque e voltou com o casaco embalado num plástico. Era esse mesmo. Nem precisava experimentar.

Chegando em casa, foi direto ao quarto, desembrulhou o casaco e o colocou, mirando-se no espelho. Excelente. O que não faz uma vestimenta ao ego de uma pessoa?

À tardinha, esperou o marido chegar, tomar o banho e sentar-se diante da TV. Então veio do quarto, exuberante dentro do casaco.

– Que tal estou, bem? – e deu uma volta na sala, aproximando-se dele.

O marido a olhou, com ombros derreados:

– Bonito – comentou sem muito entusiasmo. É pele de quê?

– De coelho.

– De coelho? Tadinhos dos bichinhos. Quantos coelhos será que foram mortos para caber nesse casaco?

A mulher deu-lhe uma mirada de soslaio, com ar de repreensão, como se fosse mais uma das “bolas foras” que ele costumava dar.

O marido então levantou-se da poltrona e chegou mais perto dela, dando uma fungada. Pegou a ponta do casaco nas mãos e a levou para perto do rosto:

– Está com um cheiro esquisito.

– Grosseirão! – exclamou ela. Se não gostou do casaco, não precisa desfazer.

– Mas é verdade, querida. Não está sentindo?

Vendo que seus comentários não gozavam de crédito com a mulher, chamou o filho, adolescente, que estava em seu quarto, certamente envolvido com o videogame:

– Marquinho, vem cá! Cheira o casaco da tua mãe.

– Pra quê?

– Cheira aí.

O garoto se aproximou, aborrecido, revirando o chiclete na boca.

– Ugh! Tá com cheiro de cachorro morto.

– Eu não disse? – exultou o marido.

Ela tirou, então, o casaco e o levou perto do nariz. Era verdade, o cheiro ali estava insuportável.

Naquela noite não dormiu direito, esperando sair o sol para voltar à loja e fazer a troca do casaco. Tirou a mesa do café, esperou o filho sair para a escola e pegou carona com o marido para o centro da cidade. Ia com negros pensamentos, se não quisessem fazer a troca seria capaz de fazer um quebra-quebra na loja. Mostrou o casaco à vendedora:

– Cheira aqui, vê se isso é normal?

A vendedora pegou o casaco nas mãos, aproximou-o do nariz e não fez boa cara. Concordava com ela. Foi lá dentro chamar o gerente. Este veio solícito. Era um quarentão alto, de cabelos acinzentados, maneiras refinadas. Cheirou o produto.

– A pele está ainda nova. Deixe apanhar um pouco de sol que em alguns dias sai o cheiro.

Saiu insatisfeita, porém sem argumentos a contrapor. O homem trabalhava com isso, devia saber o que estava falando.

Por uma semana deixou o casaco em um varal na parte posterior do terreno, entre sol e vento. Não adiantou.

Passado o final de semana, entrou furibunda na loja, com o pacote debaixo do braço. Ou davam um jeito ou ia “rodar a baiana”.

O gerente veio novamente atendê-la solícito.

– Bom dia! Algum problema?

– Quero outro casaco, sem esse cheiro horrível. Não volto pra casa com este.

O homem deu uma tremida imperceptível nas mãos. Pela determinação da mulher, previu que a parada ia ser dura, mas fez a pergunta:

– O cheirinho não saiu? A senhora deixou no sol?

– Mais de uma semana no sol e no vento. E parece estar mais fedido do que antes. Quero um novo, é meu direito de consumidora.

– A senhora tem razão – aplacou-a o gerente. Mas infelizmente não temos mais nenhuma peça. A que estava na vitrine foi encaminhada à matriz, no Rio de Janeiro.

– Então o senhor dê um jeito. Com esta porcaria não fico.

– A senhora me informe seu nome, endereço, telefone, tudo direitinho. Vou encaminhar a peça à matriz, para avaliarem seu caso.

– Avaliar? Avaliar, uma merda! – descontrolou-se a mulher. Ou me trocam o casaco ou vou no PROCON.

– Esteja à vontade, senhora – exclamou com um risinho disfarçado.

– Então manda logo essa porcaria. Quero resposta em uma semana.

Saiu da loja ofendida, gesticulando e ameaçando em voz alta, para as outras freguesas ouvirem:

– Não entro mais nesta loja. Aqui vendem artigos deteriorados.

Passou uma, duas semanas sem alguma resposta. Andava pela casa aborrecida, feições contraídas; resmungava, implicava com o filho. Telefonava à loja quase todos os dias em busca de notícias. Suas conversas com amigas e conhecidas terminavam invariavelmente num queixume contra a loja, não ficava satisfeita enquanto não narrasse o ocorrido, colhendo as expressões de apoio das outras. Ora, onde já se viu, um casaco tão caro…. Que não deixasse por menos, fosse procurar seus direitos.

Após o último telefonema à loja, sem uma resposta positiva, precisou tomar um comprimido de calmante. As veias da fronte latejavam, as mãos tremiam de raiva. Tinha a percepção de que a estavam “enrolando”.

O marido dizia:

– Esquece isso, mulher. Deixa as coisas se ajeitarem, no final tudo dá certo. Você ainda vai prejudicar a saúde.

– É porque não é com você. Queria ver se queimasse a porcaria dessa televisão ou se o seu querido canário cantador ficasse mudo…. Essas coisas só acontecem comigo. E destilava veneno: isso é que dá ser casada com um simples barnabé; fosse você um figurão, eles iriam de avião buscar outro casaco.

Cansada, uma tarde esticou-se na poltrona da sala. Foi quando começou a ouvir um barulho leve, pareciam patas de cachorro percorrendo o chão. O ruído foi se multiplicando, parecia agora de animaizinhos correndo para todos os lados.

Voltou o rosto para olhar e ficou horrorizada: eram coelhos, centenas deles, se atropelando como ninhadas de ratos, arrastando-se pelo chão em busca de espaço. Mas estavam descarnados, a pele lisa e vermelha como se fossem animais pendurados no matadouro, com sangue fresco ainda escorrendo.

O terrível cheiro que exalavam era o mesmo do casaco, fétido, asqueroso. Esses seres horríveis, sem peles, olhares aquosos, vinham em sua direção guinchando freneticamente.

Quis chamar o marido. A sua voz ficou presa; contorcia o rosto, a boca, saia apenas dali um lamento mudo. Não conseguia ao menos soltar-se da poltrona. O assalto a ela se deu em segundos; pulavam em seus braços, no colo, subiam pelo peito em direção ao rosto, arrastando em seu corpo as peles lisas ainda quentes. E os focinhos úmidos, tremelicando, os olhos suplicantes…

Sentiu-se sufocada, não conseguia respirar.

Horas depois, o marido foi encontrá-la sem vida, o corpo retorcido, os olhos dolorosamente arregalados.

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