Trabalhinho

Eu havia recebido recado para ligar urgente pro Pivica. Ligar como, se eu não tinha mais crédito no celular? Ele, se quisesse falar comigo, que entrasse em contato. Foda-se. Peguei na geladeira a última latinha de cerveja, me sentei na poltrona já puída e fui saboreando a bebida aos pouquinhos. Puta miséria!

Foi quando tocou o celular. Era o Pivica.

– E aí, tá a fim de um trabalhinho?

Porra, eu estava desempregado há seis meses, sem crédito no celular, espremendo a última latinha de cerveja e o puto me perguntava se queria um trabalhinho.

– Demorô, mano. Topo, seja o que for – eu respondi.

O Pivica era da pesada, mas nunca havia se metido em coisas como roubos ou assassinatos. Eu também, nunca me passou pela cabeça mandar alguém desta para a melhor, ou para a pior, sei lá, nunca me preocupei com o que acontece depois desta bosta de vida.

– Então me espere hoje, às nove da noite, em frente do bar do Julião.

– Certo, mano. E qual é o trampo desta vez?

– Lá eu te explico.

Isso era pelas onze da manhã, acabei a cerveja, calcei os tênis e fui andando até o mercadinho ali do bairro. Tava economizando os trocados feito um desgraçado para pelo menos um sanduba na hora do almoço. Mesmo assim, depois que abandonei a academia por falta de dinheiro havia até engordado alguns quilos. Mas era um cara bombadão, com 1,83m e 42cm de bíceps. Por isso, o Pivica me chamava quando havia um serviço que precisava de força bruta. Era eu que carregava o piano. Responsa.

Quinze para as nove eu já estava de plantão, encostado num poste, na frente do bar. Estava quente pra caramba. Mariposas voavam em torno do poste, davam cabeçadas no bocal da lâmpada. Havia colocado a camiseta regata da academia, gostava de andar exibindo os músculos. Porra, era tudo o que eu tinha. Como diz o ditado: se você só tem um limão, faça uma limonada.  Meu corpo ainda impressionava as meninas.

O Pivica só pintou aí pelas nove e quinze. Vinha tranquilo, de calça jeans rasgada num joelho, camiseta do Flamengo. Era mais baixo e mais magro de que eu, os braços eram finos e lisos. O cabelo, como sempre, numa desorganização que ele dizia ser um penteado. Tinha uma enorme pinta no lado esquerdo do rosto, os lábios arqueados para baixo, o que fazia que ele parecesse sempre estar triste.

– E aí, mano. Qual é o negócio?

– Um cara tá transando com a mulher do nosso cliente. Vamos pegá os dois no flagra e dar um pau no sujeito.

E mais não disse. O Pivica era assim, caladão, guardava os detalhes para ele, como se a posse deles lhe desse mais poder. Como se fosse um general montando as estratégias e mandando seus soldados cumprirem à risca suas ordens, sem saberem em que porra de buraco estavam se metendo.

Entramos no fusquinha 69 do Pivica e seguimos pela avenida até o bairro Itaum. Escoado o movimento do dia, as ruas estavam quase desertas. Após rodados uns 10 quilômetros, o Pivica estacionou o carro debaixo de uma árvore que coava a luz vinda dos postes. Saímos e andamos alguns metros. Nos postamos detrás de outra árvore na calçada e ficamos ali de campana. A casa que vigiávamos era baixa, de pintura descascada, guarnecida por um muro baixo, com portãozinho de madeira. Por trás de uma cortina vermelha brilhava uma luzinha fraca. Fiquei desconfiado.

– É a esposa do cara, mesmo? Será que não é uma daquelas putas sustentadas pelo trouxa?

– E daí? – respondeu ele. Eu não falei que era esposa do cara. Pra nós, basta completar o serviço e receber a grana.

– Tá certo, brother. Bobagem minha.

Já eram mais de 10 horas, estávamos na espera há uns vinte minutos e o Pivica não me adiantava mais nenhum detalhe. Quem viria? Como íamos entrar na casa para dar o flagra?

Foi aí que parou uma caminhonete Honda um pouco adiante da casinha. Um homem desceu do carro, apertou o controle, as luzes dos faróis deram uma piscada. Estava de chapéu com a aba abaixada. Veio se esgueirando como um gato, empurrou o portão, a porta da casa se abriu alguns centímetros e vupt! entrou rápido.

Esperamos mais uns quinze minutos, até que o Pivica falou: é agora!

Passamos o portão. O Pivica disse “me acompanha” e se dirigiu para a parte de trás da casa. Ali havia um pequeno espaço até o muro traseiro, cheio de varais com roupas penduradas. Ao lado de um tanque estava uma porta fechada. Estava escuro. Pivica colocou a mão no bolso da calça e tirou uma chave. Custou um pouco achar o buraco da fechadura. Enfim, nos esgueiramos para dentro da casinha. O interior era pequeno, bem simples, cozinha, banheiro, salinha com televisão e um quarto. No quarto havia luz. A porta estava apenas encostada.

Eu estava tenso. Mesmo que tivesse efetuado um trabalho desses todos os dias ainda assim ficaria nervoso. Era o temor do desconhecido. Dali a pouco estaria espancando uma pessoa que eu nunca havia visto antes. Que modo estranho de ganhar uns trocados. Nessas horas me dava um tremor nas pernas, uma vontade de largar o negócio, ir embora para a minha toca. Mas era a vida, se você se arriar nas cordas perde a luta, a vida passa.

De súbito, o Pivica deu um empurrão na porta do quarto. A mulher estava deitada de bruços na cama, só de calcinha. Era magra, uma falsa magra, daquelas de ombros estreitos, cintura fina, mas os quadris largos, a bunda achatada. Tinha a pele clara, cabelos compridos castanhos.

O homem estava em pé, perto da cama. Ainda estava de calças, mas sem camisa. Ia desabotoando a braguilha. Com o susto, deu um pinote, quase se amontoou numa cadeira no meio do ambiente. Voltou-se para nós. Era gordinho, meio careca. Fui eu que o reconheci primeiro. Segurei o Pivica, que já ia partindo para a agressão.

– Porra, Pivica, é o Doutor Célio!

Doutor Célio era um velho cliente nosso, político, pagava bem por alguns servicinhos, nada de muito violento. Uns cascudos em adversários, pequenas ameaças.

– É mesmo! – espantou-se o Pivica. Doutor Célio, o senhor por aqui – foi o que ele encontrou para dizer.

– Como vão? – ele nos cumprimentou de modo displicente e um pouco arrogante, como sempre fazia. Já havia adivinhado o que viéramos fazer ali. Quem está pagando pra vocês?

– Não pergunte isso, Doutor Célio. Não fica bem a gente entregar um cliente.

– Tá bem. Então quanto estão pagando? Eu cubro o valor.

O Pivica estava encrencado. O que fazer? Dar um pau no Doutor Célio? Nem pensar. Por outra, certamente ele não gostaria de falar em valores na minha frente. Eu nunca soube quanto na verdade ele recebia pelos nossos serviços. Contentava-me com o que recebia.

Engasgou-se um pouco, franziu a testa, olhou para o chão em direção aos seus tênis, e afinal chegou-se para perto do cliente e falou baixinho. O homem disse: tá bom, me procure amanhã no escritório.

– E agora? Vamos dar o cano no cliente? – eu falei quando estávamos já fora da casa.

– Foda-se. A vida é dos mais espertos. Trocar o Doutor Célio por um trouxa qualquer é trocar doze por meia dúzia. Vamos dizer que o homem não apareceu e desistir do negócio.

– Você é quem manda. Mas sabe o que me deu vontade ali no quarto?

– Nem imagino, mano.

– Dar um pau naquela vagabunda.

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