Crônica de inverno (Hilton Görresen)

 

CRÔNICA DE INVERNO

Hilton Görresen

 

Não sinto muita simpatia pelo inverno. Se ele fosse uma pessoa, me recusaria a sentar na mesma mesa. Talvez seja porque sou apaixonado pelas estações médias, outono e primavera, nessa ordem. Tenho uma forte relação psicológica com essas estações, coisa do tempo de menino.

A primavera iniciava com a cerimônia de plantar uma árvore. A temperatura era fresca, agradável, parecia que respirávamos liberdade. As árvores eram parceiras nas explorações de íntimas florestas.

O outono, para mim, é um tempo mítico, atemporal, feito de gostos, cheiros, lugares e ventos. Um tempo no inconsciente (como é difícil expressar essas coisas intangíveis, que ficam impregnadas na gente).

Tempo frio não é bom para caminhar: o choque térmico da friagem externa com o aquecimento do corpo pode provocar comichão. E comichão, além de incomodar, é uma das palavras que constam da minha relação das mais feias da língua.

Mas não vou deixar que minhas preferências estraguem a alegria daqueles que vêm de longe para apreciar o inverno do Sul. Daqueles que se submetem ao frio para ver nossa surpreendente neve europeia.  Daqueles que esperam um friozinho para poderem dormir debaixo de três cobertores, para degustar um vinho ou um chocolate quente.

Devo dizer que o tempo frio tem suas vantagens. Podemos tirar do armário os pesados casacos, as luvas e toucas. E as mulheres são mais bonitas no inverno, com seus casacos e botinhas. No inverno não existe mulher feia.

O inverno também me provoca recordações de um tempo remoto. Era quando meus amigos de infância enchiam as malas de casacos para passar as férias em São Bento, na casa da avó. Como eu queria ter também uma avó em São Bento.

Mas não há jeito, por precaução tirei do baú um comprido casaco, adquirido num impulso consumista e nunca antes usado. Tenho costume de comprar as coisas e viver esperando a melhor ocasião para usá-las. O casaco já não era tão folgado como no tempo em que o comprei. Casacos têm a estranha mania de irem se estreitando em torno de nosso peito e abdome, a ponto de não conseguirmos mais abotoá-los. Mas com o frio chegando quem ia discutir com um casaco excêntrico?

Não pretendo frustrar aqueles que adoram esta época de muita roupa e de mãos geladas, mas atenção: inverno em Joinville é como visita de médico (não sei se em São Bento é assim), chega, olha, e vai invernar em outras paragens. Quem sabe já tenha terminado quando você estiver lendo esta crônica.

TEXTO PUBLICADO NO JORNAL A GAZETA DE SBS EM 07.08.2021

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