Crônica indigitada (Joel)
Coloquei para diluir em soda cáustica os meus ossos. Não quero nada enrijecido em minha vida. Tudo flui no Universo, até os cristais mais empedernidos, então não posso me querer monturo individuado com paliçadas e cancelas a guardar minha separatividade. Dói diluir as arestas. Estava quase por me propagar o heroico por esse gesto e – quem sabe – algo em mim já esperava o lufar dos aplausos, que retribuiria com o confrangido destilar do ópio dos coitados. Mas, então, o comedido gesto fez-me ver que esvair-se no lagar da própria bile é um atalho quase brando, um passo egoísta e cobarde; e vi que a dor melhora e mais luminosa arde ao dilapidar os ossos com a lâmina das horas e desapego. Abutres, bactérias, fungos, busquem outros tecidos graxos, que te nutram, minha decomposição, eu mesmo faço.
Convoquei todos os meus líquidos, os poços e os perfunctórios, dos poros aos amnióticos. Estou me diluindo, liquefazendo, dissolvendo. E convoco a tudo que me verte, para ir embora sem ter mãos para segurar, sem querer se apegar a nada, ir apenas se se fluidificando pelo caminho, umidificando essa trilha de passagem, demorando-me nos torrões mais ressequidos. Por fim, restar dissolvido e lá dos confins da ausência, poder olhar pra trás e ver meu rastro sobre o mundo árido como um jardim reflorescido.
Convoquei minhas lágrimas, desde as primeiras e todas as futuras; também os suores, os sangramentos; as secreções abjetas: os inchaços, o pus dos tumores, o mijo da madrugada; e também as mais desejadas: a água na boca e as suculências finas. E a saliva das línguas na rinha, os lábios umedecidos e o mel vertido a estímulos. O bafo no espelho, a exsudação de corpos se amotinando no vidro da janela. Também o cuspe, a escarrada, aquilo que torna uma cara lavada. A tudo isso requisito e arrolo para regar jardins. Quem sabe, no ínfimo dessa vida, na aridez que sucede a saudade, apesar das contrariedades, se avistem rútilas rosas do deserto. E quando só restarem areia e cactos, que os seus espinhos farfalhem para o viandante como o tilintar de uma chuva oblíqua.
Joel Gehlen