Discurso de posse – Ac. Correspondente Donald Malschitzky

 

Discurso de posse de Donald Malschitzky

 

“O que estou fazendo aqui?” é o primeiro pensamento que acorda no meio de tantos talentos,  mas, vendo a  logo da Academia – Domus Amica.  Domus Optima –   lembro da singela música “Boas Vindas”, de Villa Lobos e Manuel Bandeira: “Amigo, seja bem-vindo, a casa é sua, não faça cerimônia, vá pedindo, vá mandando, seja seu tudo que tenho de meu e mais a Divina Graça”, e ouso contar como essa Constelação de Letras entrou em minha alma (anima):

A pata nada. Pata – pa. Nada – na.  Assim comecei a aprender a ligar sons e significados com sílabas. Era a Cartilha do 1º ano que Dona Zezé nos passava. Qual seria a mágica dessas palavras ou da  professora que fez o milagre de nos ensinar os mistérios da escrita em pouquíssimo tempo usando um método tão simples?

Curiosamente, quase dez anos mais tarde, a primeira aula de Latim, na mesma linha:  “Rana in aqua est”, mas alguma coisa não funcionou direito: enquanto a pata,  com seu andar desengonçado e suas asas não acostumadas a voos longos, descobriu caminhos, subiu montanhas,  aprendeu a voar longe e alto, misturando-se às nuvens e empurrando o horizonte cada vez para mais longe, carregando a utopia consigo,    se alimentou de páginas e páginas e marcou outras tantas, a rã, coitada, continuou na água, a nadar só um pouco e, ao sair, nunca se afastar, por medo  de predadores.

No segundo ano, Dona Aurora Guimarães Pereira escrevia  aqueles “pontos” intermináveis de História. Para mim era o máximo: não significavam matéria para estudar, mas histórias para ler e imaginar. Dona Aurora achou uma forma de valorizar meu interesse: pedia que eu emprestasse meu caderno àqueles que não tinham conseguido copiar tudo para que atualizassem os seus. Leituras em voz alta, declamações, pequenas apresentações, ditados e descrições  completavam o pacote.

Quando ela já passava bem dos 80 anos, encontrei-a num evento e ela declamou de cor um poema meu. Como não se apaixonar pelas letras?

No 5º ano (admissão para o ginásio), o professor Mário Cristofolini, organizou um grêmio, dirigido pelos próprios alunos, com declamações, leituras e canções. Abríamos nossas  cortinas para a arte a cada sábado.  No ginásio, logo depois,  o grêmio  era de toda escola, com eleições fiscalizadas, jornal mimeografado e, o que não podia faltar, jornal mural. O jornal mural, aliás, nos acompanhava: no científico, era bem dinâmico, o que nos obrigava  a pesquisar para escrever. Como os tempos não eram exatamente democráticos, além de comunicação, aprendemos muito bem o que era censura, que ia de arrancar publicações expostas a suspender aluno por uma semana, com ameaça de expulsão.

Essa trajetória acho que explica o porquê  da paixão pelas letras: foram colocadas em águas piscosas, e as pesquei,  grudaram-se nas pipas empinadas por crianças para colorir os céus,  espalharam-se em caminhos, campos, montes, onde as colho, muitas vezes em solitárias pedaladas.

Escrevia crônicas, ensaiava poemas, a maioria repousando no meio de papéis variados, sem maiores pretensões, até que atendi a um telefonema. Era Mila Ramos: “Donald, por que você nunca me contou que escrevia poesia?”.   Por conta de alguns projetos sociais, nos tornáramos amigos, mas nunca lhe falei sobre o que escrevia.  Sem meu conhecimento, a Mariza, minha  mulher, já falecida, datilografou alguns poemas, encadernou-os e os levou para a Mila, que não desistiu de mim: primeiro foram folders com seis poemas,  até que,  novamente num telefonema,   me intimou: “Tenho patrocínio para teu livro, mande os poemas”. Nasceu Grafite e, com ele, assinei um contrato moral com a literatura. Ser cronista foi a consequência que me acompanha há mais de 30 anos.

O que a literatura me trouxe?  Onde mais teria a chance de entrevistar Ottmar Schmidt,  um artista alemão que não gostava de Hitler, mas teve que lutar na 2ª Guerra e elogiava o inimigo por sua ética? E  para o mesmo livro, deleitar-me com as histórias de  Helmuth Knop, que, no início da adolescência levava almoço para um preso e,  na prisão,   encontrava pessoas que lá estavam  por falarem alemão? De que maneira seria apresentado a uma mulher que não me conhecia, a não ser por meus escritos, e, há décadas, recorta e guarda minhas crônicas? Não receberia o livro “Barão Semeando Poesia”, do Colégio Barão, de Blumenau, com depoimento de Dennis Radünz e prefácio de Lindolf Bell, das mãos da então diretora, Ilse Schmider, carinhosamente dizendo: “Foi seu livro que nos inspirou”. Ficaria sem me emocionar com dezenas de crianças, juntamente com escritores,  num piquenique na praia, a escreverem   poemas na areia para que o mar os levasse. Chrys Grossl não me surpreenderia com seus livros, acordados em palestra que fiz em sua escola quando ela ainda era adolescente. Não ouviria um homem  dizer: “Agora posso ir pra roça”, graças à cadeira de rodas que ele e outros receberam do Semeador, um evento beneficente de poesia e música, com mais de 50 artistas, que realizamos há 19 anos em São Bento e que já distribuiu bem mais de 100 mil reais para causas sociais.

Definitivamente, eu não seria o que sou se não fosse a literatura.

Está na hora de agradecer a tanta gente que até já combinei com a presidente que não nomearia para não tomar todo tempo da cerimônia, mas faço uma exceção: a Cida, minha mulher,  não conseguiu vir por motivo de saúde, mas quero registrar: obrigado, Cida, por me aguentar, ajudar-me a domar o computador e ainda,  ao menos uma vez por semana,  fazer  a primeira revisão do que escrevo.

Alguns me perguntam  o que significa ser Acadêmico correspondente; respondo que é aquele que precisa corresponder às expectativas de quem fez o convite. Tomara que consiga. Obrigado pelo carinho e pela acolhida.

Em tempos em que pessoas ousam dizer que nunca precisaram de um artista, vem-me uma velha canção marinheira cantada para ditar o ritmo dos trabalhos no convés. O estribilho diz: “What shall we do with a drunken sailor/Early in the morning?”  – “O que faremos com um marinheiro bêbedo cedo pela manhã?” –  E a canção segue, listando o que farão.

E nós, o que podemos fazer? Resistir. E o que significa resistir para o artista? Produzir, mostrar, mostrar-se, encantar corações e, pelo encantamento, seduzir mentes, pois mentes seduzidas pela arte não caem bêbadas na manhã de cada dia.

 

 

 

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