Memórias dos cárceres do sul

1964

 

No dia 23 de março de 1964, recebi a visita do Deputado Paulo Writh e do Padre Alípio de Freitas. O Professor Wilmar Dias e eu o ajudáramos em campanha eleitoral. Paulo era deputado estadual pelo PSP de Adhemar e eu o ajudara a eleger-se com votos de Joinville, como faria mais tarde com o Luiz Henrique, porque era muito popular graças à minha atividade em favor dos trabalhadores. Pessoalmente e como advogado.

Conversamos sobre a situação nacional e eu lhes disse que estávamos às vésperas de um golpe na democracia. O que parecia não ter sido percebido pelos próceres políticos de centro e de esquerda, mesmo os comunistas. Era preciso despertá-los e fazer os golpistas botarem as cabeças de fora. Tínhamos de fazer um comício com o PTB. Se não chovesse! Eu, desde quando chegara a Joinville, sentia a chuva.

Em 1957, quando cheguei, choveu de maio a setembro sem parar. Minha capa de chuva inglesa, presente de meu saudoso pai, carunchou. Meu sapato se desmanchou dentro das galochas. Anos mais tarde, fui fazer uma palestra na Escola Técnica Tupy, fundada pelo Professor Sylvio Snieckievsky e conferi no Laboratório da Escola o clima em 1957. Sim, fora chuva de maio a setembro!

Mas fui falar com o Pedro Ivo, que era o presidente do partido, o PTB, embora coronel reformado do exército.  Topou e até contratou um caminhão com som para servir de palanque. Às 20 horas na Praça do Expedicionário, chegamos. Mas cadê o PTB? Por opinião do senhor Rodrigo de Oliveira Lobo, ex-senador do PTB, o partido se encolheu. Alguns filiados vieram.

O professor Octávio Iany ao fazer pesquisas sociológicas para o plano diretor de Joinville, entrevistou o ex-Senador Rodrigo de Oliveira Lobo e o classificou de Lord Inglês, mesmo sendo presidente de um partido trabalhista…no Brasil….Só! E o partido era a maior força eleitoral do município.

Mesmo assim, começamos o comício falando sobre o golpe que estava sendo preparado pela Embaixada dos Estados Unidos contra as reformas de base, especialmente a Reforma Agrária.

Logo os golpistas chegaram, todos com lenços iguais no pescoço, para se identificarem entre si. E tentaram intimidar-nos. Reagimos! Quiseram subir no caminhão e não deixamos, inclusive dando uns tiros de revólver e pistola para o ar. Aí a polícia chegou e lhe demos uma explicação e que o comício já estava no fim. A imprensa queria saber de tudo e expliquei, acentuando o que poderia acontecer no Brasil.

Prevendo aquilo que, depois de uma semana, aconteceu: A Ditadura por mais de vinte anos!

Que, em Joinville, começou pela minha primeira prisão, aplaudida vivamente pelo Grupo da Fundição Tupy, cujo diretor-presidente chegou a discursar no pátio para os seus “colaboradores”, que o não aplaudiram. Seu discurso foi publicado pela Revista do Vale dos Irmãos Magalhães, número de abril/ 1964. Depois, precisando, vieram ser meus amigos… Já conto…

Fui levado para o quartel do 62 B.I. de jipe, dirigido pelo Comissário Aristides. E lá, já encontrei o Addison, ex-prefeito de São Francisco do Sul, que viera soltar o Romualdo Pereira de Deus, Presidente do Sindicato dos Arrumadores da Babitonga.

À tarde, um caminhão nos levou na carroceria para um Pavilhão da Penitenciária Estadual da Agronômica, em Florianópolis, onde ficaríamos, 90 homens de todo o Estado, depois de termos sido exibidos pelo caminho como comunistas… em tom de deboche.

Fiquei 61 dias. Após vários interrogatórios, soltaram-me. Nestes sessenta e um dias, fui eleito coordenador de solicitações do Pavilhão, com a obrigação de solicitar o que necessitássemos para barba, banho, sanitário, correspondência (menos jornais e revistas, por causa do noticiário contra o golpe!). Mas, como o Seda, meu cliente, fora condenado pelo júri e pelo tribunal, fez contato comigo e estabelecemos uma maneira de virem recortes de jornais e revistas para mim.

O Oficial responsável pelo Pavilhão era o Major Carlos Hugo de Souza, amigo desde o curso médio no Catarinense, ex-namorado da minha irmã Consuelo. E que nos procurava deixar à vontade, pois também fora contrário ao golpe, juscelinista que era.

Foi durante esta estada que um oficial do 62 B.I. veio interrogar-me para um IPM – que seria arquivado pelo Procurador da Justiça Militar, para não enxovalhar o Exército brasileiro, pelas minhas respostas que ele mandou registrar nos autos em 12 horas de interrogatório.

 

1967 

 

Era o dia três de outubro de 1967, uma terça-feira. As crianças ainda dormiam. Não me lembro porque pedi ao Abelardo, meu Fiel Escudeiro (trabalhou comigo trinta e seis anos e foi o mais perfeito dos amigos que já consegui ter) trouxesse do açougue do João Reinert, lá da Rua Santa Catarina, a maior costela possível para ser assada, para alguns amigos e colegas. Esperava-o, ainda em chinelos, frente à nossa casa, na rua Carlos Lange, 56, quando um fusca velho parou e me perguntaram se conhecia o Dr. Adauto.

– Sou eu mesmo, por quê?

– Está preso e incomunicável!

Ri e lhes perguntei: Incomunicável? Tenho de comunicar à minha esposa…

Fui à janela da cozinha, onde ela preparava o desjejum das crianças (já tínhamos quatro filhos – Simone, Jacquie, Carlão e Marcel, este com meses de idade, nascido em fevereiro) e lhe disse, ao mesmo tempo em que lhe passava documentos e dinheiro (este sempre em boa quantidade para, eventualmente, uma fuga da ditadura governante):

– Estou novamente preso e incomunicável. Avisa à OAB.

Os homens já haviam desembarcado e vieram atrás de mim, mandando que Stelinha se calasse a respeito da prisão. E me empurraram para dentro do fusca.

Desde então, sumi. Embora fosse visto, quando levado ao 62º BI e trancafiado numa ampla sala, por componentes do batalhão. Todavia, o silêncio seria enriquecido por uma nota do comando, negando a minha prisão e presença no quartel, ante o clamor que se levantou, não só pela OAB-SC (Paulo Medeiros, Mário César Cubas e João Roberto dos Santos Régnier), mas, igualmente, por vozes na Câmara Federal (Eugênio Doin Vieira) e Evilásio Caon, na Assembleia Legislativa. Ambos foram cassados depois!

Menção especial merece o amigo e colega Dr. Ruy Parucker, que se apresentou à Stelinha e lhe disse que tomaria conta do Escritório, sem ônus, enquanto eu estivesse impedido.

Na madrugada seguinte, às três e meia, fui levado do alojamento, que me deram para dormir, alojamento dos sargentos, para o fusca velho, que me valeria, anos depois, uma grande vitória na Advocacia.

Pelo caminho adotado, percebi que iríamos para Curitiba, provavelmente, para a Auditoria Militar, na Praça Rui Barbosa, minha velha conhecida de processos anteriores.

Na subida da Voçoroca, onde há o segundo lago, o fusca sofreu uma pane e parou.

Um dos dois homens, que estavam no fusca, saltou, levantou o capô traseiro, deu uma olhada e uma mexida no motor, voltou à frente, onde estava o motorista e lhe disse:

– Temos de fazer a volta e ver se ele pega na banguela.

Olhou para mim e me disse:

– Doutor, poderia dar uma ajudinha pra nós, temos de virar o carro e descer pra ver se pega na banguela.

Dei uma risadinha seca e lhe respondi:

– Se vocês querem me matar, me matem aqui, dentro do fusca. Não vou sair, nem empurrar, porque, depois, vocês vão dizer que eu tentei fugir e vocês atiraram em mim, aqui mesmo, quando me joguei dentro d’água. No fusca, fica sempre alguma prova do que aconteceu de verdade…

Ele embarcou, o fusca funcionou normalmente na virada da chave e continuamos a viagem até a Capital do Paraná, onde me entregaram ao Coronel Ferdinando de Carvalho, responsável pelo Inquérito Policial Militar da Operação Araucária, que já havia prendido uma porção de gente do Paraná.

O único, verifiquei mais tarde, de Santa Catarina, era eu, graças à delação de um “camarada” – Edgard Schatzmann e por vingança de um milico de Joinville, inconformado por me haver prendido e interrogado na minha primeira prisão e cujo inquérito foi encerrado e extinto para não envergonhar o Exército Brasileiro, segundo o relatório do Procurador Militar, que me deveria denunciar, ante as perguntas e respostas consignadas nele.

Na mesma noite, fui chamado à presença do Coronel para um interrogatório e, ante o que ele mandou o escrivão ler para mim como a peça de denúncia, requeri uma acareação com o delator.

O Coronel acatou o meu pedido. E o “camarada” Edgard Schatzmann, que, depois da sua condenação, voltou a ser membro ativo do Partido Comunista e até chegou à sua presidência em Joinville, foi trazido à nossa presença.

O Coronel, então, lhe pediu para contar a sua estória sobre o Dr. Adauto, com todos os detalhes.

Ele afirmou que me conhecia e frequentemente ia ao meu escritório para entregar jornais do partido e receber contribuição financeira; que meu secretário era um senhor de cor; que o meu escritório era na Rua Blumenau; que eu me reunia com outros comunas, seguindo a orientação do partido em Santa Catarina; que conversávamos muito sobre a futura revolução comunista, etc…

O Coronel lhe perguntou se me conhecia, se sempre tinha contato comigo. Ele respondeu: “Sim eu conheço ele, mas nem sempre podia conversar com ele, porque estava atendendo clientes.”

O Coronel, então, lhe perguntou se conhecia a pessoa que estava sentada ao seu lado (Eu!).

– Não, nunca vi este senhor – respondeu olhando-me bem.

– Pois este é o Doutor Adauto!

Quis dar-lhe um bofetão, mas o Coronel me impediu, segurando-me o braço no ar. Ele chegou a se levantar diante da surpresa.

Falei, então, ao Coronel: Acho que pode mandar me levar para casa de volta, não?

Ele esclareceu que havia detalhes do inquérito. Chamou um praça para me levar. Então lhe pedi que mandasse o escrivão lavrar um auto da acareação para ser assinado pelo “camarada” Adolar, por mim e por ele, coronel.

Atendeu-me novamente. E, em seguida, me mandou ao quartel, onde ficaria preso e incomunicável 27 dias, em banheiro com cama, na ala dos oficiais. Consegui saber que era no Boqueirão, bairro curitibano.

Tão cansado por tantas emoções, achei que o melhor era dormir e começar a pensar na libertação, no dia seguinte. Eram umas quatro da madrugada. Pressenti que havia um guarda armado, andando de um lado a outro diante da minha porta.

Racionalizei – deve ser para a minha melhor segurança.

E tratei de dormir, não sem antes haver pensado preocupadamente na minha família e a encomendado ao Poderoso e Generoso Cosmos, meu íntimo para tais situações.

O toque de clarim me acordou. E tentei ver alguma coisa pela tela finíssima, que tapava minha janela para o pátio do quartel.

Experimentei a água do chuveiro para ver se era quente e como o fosse tomei um banho, embora não tivesse roupas para mudar, aproveitando para lavar a cueca e a camisa.

Devolvia-me a esperança de ser mandado embora, libertado, após aquela acareação. Porém o café, que me foi servido por um praça, ajudante do rancho, que se negou a falar comigo, respondendo às minhas perguntas, me fez entender que a minha situação não era tão promissora em termos de soltura. Sofreria os efeitos da minha luta, mais ou menos aberta, contra a ditadura, nestas vésperas do AI-5.

Pois, mesmo depois da primeira prisão no começo de abril de 64, quando fiquei na Penitenciária de Florianópolis por mais de sessenta dias – e mais cinco dias na mesma Capital, em 65, para explicar uma coincidência entre protesto dos estudantes da UFPR contra o Reitor Suplicy de Lacerda e a minha presença com a Stelinha na hora – não deixei de escrever, de falar, de fazer palestras, seguindo as regras de Berthold Brecht sobre as maneiras de se dizer a verdade sob ditadura.

Até mesmo uma frase, numa das minhas estórias curtas publicadas em A Notícia, me obrigou a ir ao 62 BI dar explicações do seu sentido e propósito (Trote Televisônico – Aos Domingos, crônica, p.8). Descobriria, após ganhar a liberdade por habeas corpus impetrado pela OAB Federal, através do Colega e Jurista Dr. Augusto Sussekind de Moraes Rego, junto ao Superior Tribunal Militar, que sempre fora seguido e todos os meus textos eram recortados e arquivados e os meus pronunciamentos gravados pelo SNI. Contou-me o sargento do batalhão, que era encarregado desta tarefa, em uma tarde de sauna no Clube dos Sargentos e Subtenentes de Joinville.

Para não ficar parado, enquanto aguardava uma manifestação das autoridades, fiz bastante ginástica e tomei mais um banho. Em seguida, bati na porta e chamei a sentinela, que não veio só, mas trouxe um oficial de ascendência japonesa, cursando o CPOR, ao qual me queixei da falta do que fazer e lhe perguntei se o batalhão não tinha uma biblioteca para eu poder ler algum livro.

Ele me prometeu uma lista de um depósito de livros, que havia num canto qualquer. E a lista tinha relacionados meia dúzia de bons autores, como Charles Morgan, de quem li, então, Sparkenbroke; A Pele de Malaparte; O Drama de Jean Barois, de Martin Du Gard; Clara dos Anjos, de Lima Barreto, alguns números de Seleções; Médicos Charlatães do Passado, de Oswaldo Cabral, etc.

Pedi, igualmente, papel, envelopes e caneta para escrever, no que me atendeu, também. Depois, não apareceu mais. Certamente, ou foi punido pela sua liberalidade, ou foi proibido de contato comigo.

Na madrugada do segundo dia, fui acordado, mandado vestir-me e levado de fusca, também, velho (pareceu-me um disfarce para a ação dos agentes da ditadura) a uma repartição, a qual, depois de solto e por razões profissionais, vim a verificar que era uma delegacia da Polícia Federal, onde se faziam interrogatórios de presos políticos, não sem torturas.

Preparei-me para o pior, quando ouvi gritos e vi sangue respingado em parede. Porém, fui muito bem tratado, respondendo às perguntas sobre mim, a minha profissão, as minhas atividades políticas e alguma ligação com o Partido Comunista. Sobre estas duas, neguei. Nada de atividades, nem ligações subversivas.

Mandaram-me de volta ao quartel para a rotina do café com o mudinho, que aguardou para levar a xícara e a colher. A ginástica e o banho, a lavação da cueca e da camisa, a leitura do Sparkenbroke e a redação da primeira carta para casa gastaram as próximas 24 horas.

A prisão parece nada para quem está fora dela. Mas, quem está nela, sente e sabe o seu efeito sobre o ego. Levado para dentro, ouve, atrás de si, uma chave na fechadura rodar e trancar a porta, única saída, e o carcereiro a levar consigo, não dando esperanças de vir abrir a porta a qualquer hora, se não a uma hora em que a pena deixou de ser aplicada ou se exauriu.

Assim, as minhas ilusões de uma rápida volta à vida normal se foram esvaindo à medida em que os dias passavam. O que aumentou as preocupações com a família de quem não tinha, nem teria notícias tão pronto. Ainda bem que havia montado um esquema para quando fosse preso novamente, após as duas carceragens anteriores.

Todavia, ignorava que a ditadura, igualmente, houvera montado um esquema para obter resultados mais facilmente: bloqueio das contas bancárias; grampo nos telefones; desorganização do escritório numa revista que revirou tudo de pernas para o ar; revista à nossa casa, que era nova e recém ocupada; vigia de 24 horas a ela, com fotos dos que a visitavam em apoio à Stelinha e aos quatro filhos; ameaças à minha vida em troca de informações por um certo tenente Aloísio, o qual não era da carreira militar, mas, sabujamente, como aluno do CPOR, em Curitiba, se pusera a serviço da ditadura.

Stelinha viveria um asqueroso episódio com ele. Ela se mostrou uma gigante, enfrentando aquelas vicissitudes, corajosamente, na minha defesa como seu marido e pai dos seus filhos.

Isto levou o tenente Aloísio a tentar um assédio, argumentando que ela era muito linda e jovem, não ficava bem estar sozinha, quando o esposo estava e ficaria preso, se não morto, pois eram raras as chances de ser libertado antes de uns dois ou três anos de prisão. E que poderia aliviar a pena no processo…

Respondeu-lhe altivamente que ele deveria lembrar-se de ter, provavelmente, mãe e irmã (ele as tinha!) e que elas se sentiriam humilhadas se recebessem tal cantada, fosse de quem fosse, ainda mais, em tal situação. E, com a maior firmeza, lhe disse: “O senhor merece morrer com um tiro na boca, seu canalha!”

O tenente Aloísio foi morto em Araucária, anos depois, já advogado em plena profissão, com um tiro na boca, por volta do meio-dia. Nunca se soube quem foi o assassino! Aventamos, até, a hipótese que não teria sido vingança, mas uma queima de arquivo da ditadura. De qualquer forma, lastimavelmente, não tivemos qualquer participação nesta limpeza… Mas agradecemos ao Cosmo por ela.

Aliás, em Curitiba, numa ocasião em que fui levar um filme para ser revelado, encontrei-o na loja, um ou dois anos após a minha absolvição, e o provoquei: “Como vai, valente?” Ele nada me respondeu e saiu, tão rápido que acabou esquecendo a sua máquina sobre o balcão. Foi a última vez em que nos vimos. Mandei o balconista guardar-lhe a máquina, esclarecendo que ele viria buscá-la depois da minha saída. O que soube ter acontecido, quando fui buscar as minhas cópias.

Rememorando os acontecimentos – na prisão se tem 24 horas gratuitas, para tudo – recordei-me de um fusca velho nos seguindo a Rio do Sul, em cuja comarca fui fazer a separação do prefeito, dirigido por uma mulher. Na verdade, era o tenente e seus asseclas, ele com uma peruca para disfarçar-se. Solto, conversei com Cesar, genro do Abelardo Ganancinha, que foi conosco àquela audiência, e ele, igualmente, se lembrou do estranho fusca com a mulher à direção. Vínhamos sendo seguidos sem nos dar conta. Mais observações deveriam estar fazendo na busca de pistas e provas da minha subversão, já dentro do quadro da minha próxima prisão, articulada por aquele oficial, cujo inquérito foi ridicularizado pela Procuradoria para não enxovalhar o Exército brasileiro.

Deve ter pedido para me incluir no primeiro arrastão político que houvesse. Por isso fui o único catarina na Operação Araucária. Os demais todos residiam na Capital do Paraná. Devem ter prometido suavidade ao camarada Adolar, se declarasse o que declarou. Ele era joinvilense, mas trabalhava em Curitiba. Ficava mais fácil, mais verossímil a sua declaração.

Lá pelo quinto dia de prisão, fui tirado do banheiro para um banho de sol e, felizmente, não um fuzilamento.

Se me queriam morto, como o desejou o Dr. Hans Dieter Schmidt, então Diretor-Presidente da Fundição Tupy, no pátio desta, publicamente, em discurso, publicado na Revista do Vale, no dia primeiro de abril, quando se regozijou com a minha prisão, optaram por bronzear-me antes. Receberia o troco, quando, com apoio na ditadura, reduziu as horas de trabalho da sua empresa e, consequentemente, as remunerações dos seus “colaboradores”! Já em liberdade fui para os portões da Tupy e disse, em alto e bom tom, a quem quisesse ouvir, que aquilo era ilegal e todos tinham de ganhar aos menos oito horas diárias. O dr. Dieter mandou voltar ao horário e remuneração antigos e pagou as diferenças extra-autos, excomungando-me e me prometendo vinganças dignas da Inquisição…

Durante o passeio, que não poderia ser parado, encontrei um coronel do Exército, que se havia sublevado contra a ditadura e não lograra chegar muito longe com o seu contingente – 22 homens –  estando  preso, no mesmo quartel. Era o Cel. Jefferson Cardim. Apesar das proibições, conseguimos conversar um pouco e trocar as nossas identidades e as nossas amarguras com o governo do golpe. Foi a única vez. Foi julgado, condenado, perdeu a patente e cumpriu uma pesada pena de prisão. Desconheço a sua anistia e se recebeu a sua indenização.

Em um outro banho de sol, consegui me desprender do guarda acompanhante e entrei na Cantina dos Oficiais. Antes que tivessem tempo de me chamar à ordem, eu já estava falando com o Chefe e lhe falei do péssimo rango que recebia. Foi com a minha cara e me pediu que sugerisse um cardápio. Escrevi ali mesmo para todos os dias da semana, incluindo até feijoada aos sábados e churrasco aos domingos. Ambos com farinha de mandioca de Morretes. Ele cumpriu a sua parte. Infelizmente, mesmo o tendo procurado, quando já em liberdade, não consegui me comunicar com ele. Fica aqui a minha gratidão e reconhecimento pela excelência da sua cozinha. Também, pudera, era de oficiais do nosso Exército.

A vidinha rotineira foi quebrada por três fatos: Numa noite, pelas 22 horas, alguém bateu à porta do um banheiro privado duas vezes e me passou por baixo dela dois pacotes de plástico com Cachaça Boqueirão. Fiquei na dúvida em os beber, porque poderiam ser algo pior, venenoso ou alucinógeno. Entretanto, como já estava para tudo, derramei o seu conteúdo em um copo e bebi. Pensei que relaxaria, mas, ao contrário, me excitou e nem consegui dormir. Há algum tempo não provava álcool! Como escrevia todos os dias uma carta para a família, juntei algumas e, quando saí para o banho de sol, passei-as ao meu guarda com uma nota de 50 (tinha dinheiro trazido de Joinville, porque não me revistaram, quando me jogaram no banheiro), dizendo-lhe para pôr no correio e ficar com o troco. Com as cartas, mandei uma crônica* para A Notícia, que a publicou no lugar da minha coluna semanal. Causou enorme comoção nos leitores e na cidade e soube disto porque um oficial foi ao meu banheiro e me disse aos berros:

– Isto é tática comunista, querer comover a população contra nós !

Disse-lhe, calmamente:

– Não sei do que está falando, senhor!

– Da sua crônica sobre a sua ausência e da saudade dos seus filhos.

– Como poderia escrever daqui, se nem as minhas cartas familiares podem ser postas no correio, até para não revelar o meu atual endereço, segundo me disseram?

Ele parou, ficou mudo, fez meia volta e se retirou.

Desta forma, a vidinha ia rotineira, sem mudanças, nem esperanças, até o terceiro fato, num sábado pela manhã, quando me chamaram em voz soturna do pátio debaixo da minha janela telada.

– Quem tá chamando o Adauto? – Seria outra cilada?

– O Beto Régnier !

– Quem, o Fumaça? (Apelido do Régnier)

– É.

– Diz pra ele que tou aqui. Com urgência, façam alguma coisa! Grato, cara.

Saberia depois o que os levou a me encontrar. Aroldo Fedato e o Régnier armaram um plano de torneios entre os quartéis com prêmios em medalhas e troféus. Foi aceito pela 5ª. Região. E o puseram em prática. Todos os sábados havia jogos em um quartel diferente. Alguns colegas, amigos do Régnier, investigavam a presença de presos políticos nele. Aqui, o colega perguntou por presos políticos e um dos jogadores do time lhe disse que havia uma porção, mas um deles, curiosamente, não era conhecido, porque estava num banheiro com tela na janela.

Acharam-me!

A situação mudou. Stelinha foi para Curitiba e acompanhada do seu irmão, que estava no CPOR, foi ao quartel para ter contato comigo, falando com o comandante.

Este disse que não poderia fazer nada, porque eu não era preso militar e, sim, político, estando sujeito ao Cel. Ferdinando de Carvalho. Ela foi a este e, corajosamente, como era do seu caráter, lhe pediu para ter um contato, explicando-lhe quem eu era, marido, pai, advogado da mais inestimável idoneidade e que a prisão estava causando comentários sérios contra a arbitrariedade em Joinville. O coronel redigiu uma ordem ao comandante do Batalhão para deixá-la me ver e falar comigo. Só ela!

E nos reencontramos. Entre risos e choros. Havia sol novo nas nossas vidas, que trazia consigo esperanças. Ela voltou a falar com o coronel Ferdinando e este alargou as visitas para as filhas e para uma cunhada. Depois para o Dr. Paulo Medeiros, então, presidente da Associação Joinvilense de Advogados, predecessora da Subseção, ambas fundadas por iniciativa minha. Ele me levou maçãs…

Neste meio tempo, a OAB/SC, presidida pela saudoso Amigo, Colega e, depois, Irmão, Antônio de Freitas Moura, através da ORDEM Federal, já havia impetrado o habeas corpus em meu favor, além de reclamar do “Presidente” Castelo Branco contra artigo da Lei de Segurança Nacional proibindo o exercício profissional para quem estava sendo processado com base nela. Neste mesmo sentido, já se manifestara o Prefeito Nilson Wilson Bender, ao receber a ordem de cassar o Alvará de funcionamento do meu escritório com base naquele dispositivo draconiano, recusando-se a cumprir a determinação e me mandar entregar, pelo colega Aymoré Palhares, em casa, a cópia do seu ofício resposta-negativa à Auditoria Militar da 5ª Região.

No dia do julgamento do habeas pelo ST Militar, no Rio de Janeiro, o Conselho Federal se declarou em sessão na sala dos passos perdidos da corte, acompanhando o julgamento, que me foi favorável no writ impetrado pelo Dr. Augusto Sussekind de Moraes Rêgo.

E o Alvará seguiu prestes, sendo apresentado em Curitiba pelo saudoso pai do Colega Assis, Dr. Aureliano Maeder Gonçalves, que me foi buscar de carro, me levou ao apartamento dos meus sogros, de onde fui de táxi para Joinville com o Seu Ari, pai da Stelinha, sendo recebido em casa por ela, Ivete e Luiz Henrique, estes quando lhe faziam companhia, jogando baralho. Naquela noite, o assíduo Monsenhor Sebastião Scarzello não pudera ir como o fazia todos os dias, após a Missa das 19 horas, na Catedral, antes de se recolher ao seu apartamento no Hospital São José, vizinho lá de casa. A soltura lhes era desconhecida a meu pedido, para surpreendê-los. Era o dia 30 de outubro de 1967, uma segunda-feira. As crianças já dormiam.

 

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