O anjinho guloso

Quando CADU nasceu, o Senhor chamou Theodomiro, o anjo.

– Chegou a tua hora de seres anjo da guarda de um menino recém nascido na terra. Tás pronto, Theodomiro, para essa missão?

– Senhor, obedeço à sua vontade. Fui programado durante estes séculos todos para cumprir a nossa maior missão: ser anjo da guarda.

O  Senhor examinou-o dos pés à cabeça.

Era um belo anjo. Cabelos louros encaracolados; olhos azuis; pele alva e macia, imberbe; pescoço fino; ombros largos; tórax musculoso; cintura fina; 1.85 de altura,  pernas retas; pés firmes. Anjo atleta, bronzeado de surfar nas nuvens.

– Amanhã desces à Terra. Quando ele completar sete anos, ouvirás um sininho: é chegado o tempo de voltares. Outro anjo te substituirá. Arranja um bom par de asas e parte com a minha bênção.

Theodomiro cumpriu a ordem e veio à Terra. Enquanto descia, quase se afogou com o ar viciado, fruto da poluição. Tossiu praticamente durante todo o percurso.

– Meu Deus, como podem fazer tal coisa? Deixar que as criaturas se sufocassem desse  jeito. Em nome de quê?

Conferindo o endereço que lhe fora dado por S. Pedro, à saída do Céu, facilmente encontrou a casa do CADU, pois, modéstia à parte, era anjo esperto e tinha noção de direção. Entrou e logo viu o berço esplêndido, ornado de fitinhas e guizos, os quais tilintavam quando o menino se mexia, despertando-lhe a atenção e a curiosidade. Theodomiro subiu para o leito e nele se aninhou ao lado do menino, sentindo a maciez do colchãozinho e o calor do cobertorzinho que o cobria.

– Gostoso estar assim. No Céu ninguém nasce. Os anjos são criados. Desde o começo do mundo. Nenhum jamais gozou daquelas fofuras deliciosas, nem daqueles calores repousantes…       Era voar o dia inteiro ou surfar em nuvens. Cantos e orações o dia inteiro em louvor do Criador. .

Ele dava a impressão de que já não mais se alegrava, mas, sim, se aborrecia com eles. E com os pedidos dos homens e mulheres da Terra ?…

Seus pensamentos foram interrompidos, quando do bercinho se aproximou uma senhora, certamente a mãe do Cadu, que o tomou no colo, o acordou com uma canção sussurrada e lhe deu o seio a mamar.

Theodomiro ficou olhando aquela cena cheia de ternura e comoveu-se. Quase chorou. Não tivera mãe que o aninhasse ao colo, nem o aleitasse. Afinal, fora criado anjo. Sem carne, osso ou sangue. Uma sombra por assim dizer.

Quando o menino se cansou de mamar ou se satisfez, Theodomiro, sendo invisível, resolveu experimentar. E, pela primeira vez, provou o sabor do leite materno. Sabor que jamais esqueceria, sabor que ansiava por de novo provar. Como, na verdade, o fez, sempre que o menino era amamentado.

Quando Cadu passou a intercalar o seio materno com as mamadeiras, Theodomiro não vacilou: saboreava ambos.

E, quando lhe vinha algum remorso de estar cometendo falta, afastava o pensamento e justificava: Não sou eu o seu anjo da guarda? Não tenho de zelar pela saúde física e moral? Se ele for envenenado, de quem será a culpa? Tenho, pois, o direito e o dever de provar toda a sua alimentação. Pelo bem da sua saúde e pela segurança da sua frágil vida.

Cadu crescia e Theodomiro sempre ao seu lado. Vieram as papinhas, as sopinhas, as frutas, as bolachinhas, os chocolates, os sorvetes, as pipocas, os pastéis, as empadinhas, os refrigerantes, as refeições. Depois as festinhas com bolos, tortas, miudinhos, salgadinhos, guaranás, pizzas, calzones. Em seguida as merendas do jardim de infância.

Theodomiro, acostumado com os jejuns pantagruélicos do Céu, já não se contentava com as sobras do Cadu. Invadia a geladeira, o guarda-comidas. Nas festas, afanava pedações de torta, de bolos, taças de sorvetes, refrigerantes e ia devorá-los, escondido, sozinho num canto sossegado, longe das vistas de todos e, principalmente, da do seu protegido, cuja guarda relaxava, valendo-se dela apenas para satisfazer a sua gulodice.

À noite, empanturrado, tinha pesadelos. Acordava banhado de suor. Apavorava-se com a ideia de que estivesse cedendo, cada vez mais à gula. E, arrependido, passava as noites prometendo nunca mais tocar em nada, afastar-se da boa mesa, viver em jejum. Mas no dia seguinte, o cheiro do café recém-passado toldava-lhe a lembrança das promessas, corrompia-lhe a força de vontade e ele se banqueteava no desjejum do protegido.

O pior, porém, não era só o pecado da gula. Outros se somavam a ele. Omissão da guarda; irresponsabilidade pelos atos; furto. Sim, pois cada vez sumiam mais coisas da geladeira, do guarda-comida, da despensa, das mesas dos aniversários. Juquinha levava a culpa e o castigo, por mais que protestasse inocência. Mas como provar a sua inocência, se as roupas apareciam sujas de doces, pingadas de sorvetes, enodoadas de frutas?

Por não poder esclarecer este comportamento, Cadu perdeu de ganhar a sua primeira bicicleta de duas rodas. Fato aprovado por Theodomiro:

“Temeridade dar tal veículo a uma criança em meio a esta loucura infernal do trânsito, pondo-lhe em risco a vida”. Theodomiro se tornava humanamente racional. “Mais tranquilo, ainda que poluidor, passear de carro com os pais.”

 

É que durante tais passeios não faltavam as pipocas, os sorvetes, as empadinhas. Vez por outra, barras de chocolate. E Theodomiro, sorrateiramente, abocanhando a sua parte.

Às vésperas dos sete anos de Cadu, os pais preparavam-lhe uma enorme festinha, tendo contratado doceiras e cozinheiras para a recepção, que ofereciam aos amiguinhos do filho. Theodomiro se continha para não passar o dedão nas coberturas das tortas; furtar morangos com nata; empanzinar-se com os recheios dos marrecos, dos frangos e das tainhas; embriagar-se de refrigerantes. Nem dormiu, naquela noite, agoniado pelo nascer do dia, o dia da festa.

Às seis horas, quando os pais foram acordar Cadu para os cumprimentos e a entrega de presentes, ouviu o sininho. Ganhou um susto. Correu-lhe um frio na barriga. Chamavam-no de volta ao Céu. Logo agora! Puxa, o tempo tinha corrido tão depressa, que nem sentira. Chegara a hora de prestar contas ao Senhor.

Apavorou-se. Como se apresentar assim? Correu ao banheiro para se arrumar.

Mirou-se no espelho e viu um ser balofo, cabelos desarrumados, olheiras de sapo, bochechas caídas, pão no queixo, rosquinhas no pescoço, peito caído, barriga saltada, pernas cheias de varizes, pés encardidos nas sandálias acalcanhadas. Estava superobeso. Passou a mão no rosto e sentiu a barba por fazer e os bigodões mexicanos, caindo pelos cantos da boca, onde os dentes cariados mal se escondiam.

Temeu o Senhor e tratou de ajeitar-se.

Procurou o cordão da cintura e não lhe servia mais na cintura. Examinou a bata suja, engordurada, manchada de comidas. Engoliu em seco. E agora? Tinha de enfrentar. Desse no que desse. O sininho soou novamente. Olhou tristemente para o seu protegido. Deu-lhe adeus e desejou felicidades pelo aniversário.

Concentrou-se. Bateu as asas. Elas ruflaram de par em par. Mas devido ao peso não conseguiram elevá-lo de volta ao Céu.

– Volta pro Céu ou não, crianças?

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