O cânone Hercúleo (Joel Gehlen)

 

O cânone Hercúleo

Joel Gehlen

 

Herculano nunca foi culto, sempre preferiu ser cultor, aquele que lavora seu jardim sem se emaranhar nas teias dos preitos adjudicantes. O homem culto se parece cada vez mais com um silo abarrotado de grãos. Uma potencialidade separada do mundo por uma camada expeça de arrogância, cinismo e discriminação, que vai terminar na esterilidade vazia dos conceitos e, roído de carunchos, fenecer sem se realizar. Herculano, ao contrário disso, quis ser o grão que se cumpre semente, se lança ao cio da terra, expõe-se às intempéries dos ciclos de morte e renascimento. Optou por esvaziar-se das inquietações que nos orgulhamos tanto de estar cheios, e na solidão escura de perder a individualidade enquanto grão, se colocou disponível para o milagre da multiplicação. Em sinestesia com o poema-canção do Gil, nunca negou sua sina de se moer trigo para nascer pão.

Jovem vocacionado, foi seminarista aos 11 anos, e o seminário nunca o deixou. Renunciou à batina, mas não ao hábito de que se via incumbido. Ao desistir da vida eclesiástica, exerceu o sacerdócio no jornalismo, de um modo desapegado, amoroso, comunitário, simples e com generosidade, cuja doçura não deixou de acidificar com seu pendor mordaz. Mais que leitores, tinha congregados.

Lembro dele na redação do Jornal A Notícia, com camisa xadrez, uns óculos antiquados, chapéu de roceiro, vestindo calças marrons e calçando sandálias. O rosto trigueiro atirando um olhar astuto e uma voz de clérigo. Mantido nos modos talhados no eremitério, o Herculano era o primeiro a chegar na redação, lia o jornal, jogava umas farolas com os colegas conforme iam chegando, caçoava, dava uns telefonemas, mais para sacanear algum vivente que para tomar nota de notícias. Tinha uma curiosidade genuína pelas gentes e seus acontecimentos, mas não perdia uma anedota em nome disso. Mesclava rusticidade e galhofa sacando de termos como “coió”, “tongo”, “jumento”, “jaguara” que seriam xingamentos não fossem saídos dos mesmos lábios onde mantinha um afável sorriso pendurado.

Portava-se com certa displicência, quase com desdém pela ritualística da redação. Passava ali como um pároco do interior que vai à igreja e diz sua homilia maquinalmente, enquanto sua cabeça campeia nos arrabaldes, depois da curva da estrada. Parava no jornal para datilografar a matéria recolhida na malha fina da tarrafa dos olhos e ouvidos, que ele atirava no mundo com absoluta maestria, depois vinha puxando, com calma e sem mistificação. Como quem aperta um “paieiro”, sentado no banco à janela de um boteco de madeira; bate a binga e traga uma baforada profunda, com a nuvem do texto já enxameando ao redor.

Herculano escreveu para jornal e livros com laicismo, sem reverência, como quem sabe a missa, mas descrê das palavras. Amava mais a vida de repórter que a de redator, o convívio com as fontes, bater perna por aí, fazer visitas, checar um local, provar uma cachaça alambicada, uma farinheira com roda d’água, ouvir um mentiroso convicto… Mais que um prosador era um proseador. Contar e escutar causos foi sua escrita. Daí que se fez intérprete da alma rural. Era exímio escutador, um italiano que não falava pelos cotovelos, quiçá, influenciado pela sisudez dos “alemão” do interior.

A lição que o Herculano deixou é a de evitar parecer um intelectual, esse tipo de sujeito embotado pela recorrência de pensamentos que ficam lombrigando. E o antídoto é manter-se um aprendiz pela vida toda. Polir com constância a face do espelho interior, de modo que se possa captar o mundo novo de cada dia, desembaraçado das sujidades das ideias fixas. Trocou as harpas do paraíso pelas aspas de contar causos, compôs milhares de reportagens e perfis, escreveu livros, tornou-se imortal da academia de letras. Por fim e por ironia, acabou por erigir sua própria igreja, sendo o seu único ícone. Tem seu nome e fotografia em milheiros de recortes de jornal emoldurados nas paredes do bem-querer, em casas, botecos, firmas, comércios, engenhos, recintos onde é um cânone reverenciado sem o enfado das hipérboles. Herculano declinou de ser culto, acabou cultuado.

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