O casamento de Preta (Salustiano)

O CASAMENTO DE PRETA

“A preta vai casar!” A notícia correu rua na boca da velha Paula, talvez a mando. Era vizinha “de porta”. Dona Juveci, mãe da noiva, estufava os secos peitos: “Pois é, boba, um rapaz tão ‘bão’. E tem um corcel”.

Assim, Zeca, o pacato e reservado noivo, adentrou no falatório da rua: “Engomadinho”, diziam uns, “come sardinha e arrota caviar”, diziam outros. Certo é que Zeca passou a frequentar a casa nos sábados, assistindo a televisão preto e branco até fechar o canal. Como ficava tarde, dormia ali, aproveitando para comer a maionese de todos os domingos de dona Juveci. “Os tempos mudaram”, justificava ela, enquanto seu Varte, o marido, contentava-se em tomar a cerveja que o futuro genro pagava.

O dia do casamento chegou. Aliás, o burburinho começou dias antes. Na quinta o ruído do caminhão do seu Agenor trouxe bambu e tábuas, além dos encerados, grossas lonas barrentas de fazer barraca. A vizinhança ajudava, era martelar daqui, erguer tábua de lá, “trás prego!” gritava Evilásio, “amarra aqui!” gritava seu Vermute. Ficou pronto o grande arco do portão, assistidos na nossa curiosidade de longe.

Na sexta mataram os porcos. Dois cachaços criados por seu Varte, de tão gordos nem se mexiam. Foi preciso seis homens para colocar o primeiro no tablado. Pernas amarradas, jogavam água de chaleira enquanto o bicho guinchava. “Luzia, tira essas crianças daqui!” gritou dona Juveci. Mamãe veio ligeira, mas não o suficiente para eu ver seu Varte enfiar o cutelo no bicho, que nem abriu a boca. O sangue espirrou, corriam para aparar o sangue da morcilha. Tentando olhar para trás, escutava os guinchos rareando.

Era uma festa. E que festa! Em grandes latas de querosene se derretia a banha, com cuidado se armazenava em outras, sobrava o torresmo quentinho. Dona Juventina me deu um pedacinho, delícia. A cachaça em garrafão circulava pelas mãos do Evilásio, um traguinho “prá modi esquentá”. Histórias eram contadas entre risadas, coisas nem sempre santas.

Folhas de coqueiros e bananeiras ornaram o arco da entrada. Zeca chegou com o corcel brilhando. Teve que provar a cachaça e o torresmo. A velha Paula trouxe quentão e servia para os pirralhos. “Eles são crente”, alertou dona Juveci. “Mal não faz”, dizia ela, na risada esgazeada e tosse seca depois de tragar o cigarro de palha. A bebida era boa, minha mãe estava longe, tomei um copo cheio.

Tardinha de sexta, puxaram a lona, cobriram a barraca na armação de bambu. O caminhão trouxe os “meio tambor”. Começaram a colocar cervejas e gasosas, junto com grossas barras de gelo. Misturavam serragem para “guentar” gelado.

Deu discussão, seu Gervásio e seu Daniel erguiam a churrasqueira, sob orientação do seu Vermute. Não se entendiam. A gurizada ajudava a amontoar a lenha do churrasco. A noite varou madrugada, comeu-se os miúdos e a cachaça rolou solta.

A rua do sábado amanheceu rindo. Cedo acordou-se com seu Vermute disparando três tiros de canhão, fogo de artifício comprado na “cidade”. Seu Varte não fez por menos, disparou o bacamarte que fora de seu avô. Três tiros “prá homenageá a noiva”. A faina recomeçou cedo, Zeca ajudava instalar os “focos” no rabicho da barraca, a manhã correu num tal de trazer panela, cozinhar arroz, fazer farofa, rechear frangos. Vários fogões improvisados crepitavam pelo terreiro, cada vizinha cuidava de uma coisa, a velha Paula circulava com sua garrafa de quentão frio, seu Maneca, o marido, distribuía benzimento, era santo homem de roupa branca. A preta, noiva prometida, nem aparecia, “precisava se prepará”.

Lá pelas dez o padre Jorge apareceu e a mulherada se derreteu, todas queriam que provasse seus quitutes. Ele ficou pouco, inspecionou tudo e se foi. “Pois é, boba, nem ficou pro almoço!”. Aliás, o almoço foi comunitário, galinha ensopada, aipim cozido, arroz… Dona Carmelina trouxe feijão. “Tem que ter, né?”. E a cachaça corria solta. Zeca foi para casa, dava azar ver a noiva antes de casar, mas deixou o corcel aos cuidados do Cunha, vizinho da oficina, “prá levá a família”.

A tarde adentrou nos preparos do casório. Um tal de provar roupa, “fecha aqui pra mim”, “pega brasa prá passar essa calça”, “cadê minha meia?”. Lá pelas três o caminhão do seu Agenor encostou. Limparam a carroceria para levar o pessoal. Todos queriam subir, ficou apinhado de gente.

Fomos também. “A gente é crente, mas não faz desfeita”, dizia minha mãe. Aboletamo-nos na carroceria. Achei um soldadinho de chumbo entre as frestas da carroceria, amigo que brincou nas horas da missa de igreja cheia. Na volta o foguetório começou antes de descermos do caminhão. Segurando a mão de meu pai, via o espocar das luzes na escuridão. Era lindo. O Mário do seu Vermute jogava bombinhas na gente.

Tudo era alegria, arroz com passas, carne com pêssego em calda, farofa de torresmo, “come boba, que tá bão…”. Com outras crianças corríamos entre os convidados, brincadeiras de todo tipo. A fumaça da churrasqueira pairava sob o teto da barraca de lona, seu Vermute atendia o churrasco, tirava a carne do meio das folhas de mamão, colocava na brasa, “do jeito do freguês”. Os noivos comeram pouco, tomavam gasosa em mesa separada, seu Varte já estava com os olhos vermelhos e a cachaça ainda corria solta.

A Preta puxava o Zeca para cumprimentar os convidados, cada um puxava o embrulho de debaixo da mesa, uma toalha, um jogo de copo, um jogo de lençol, “é de coração”, “não precisava”, dona Juveci ia recolhendo, só se ouviam risadas.

O povo queria dançar, o gaiteiro não apareceu. Vilian, irmão da noiva, foi de bicicleta ver o que aconteceu, era longe, perto da Tupy. Ninguém esperou, trouxeram um rádio grande, com caixa de madeira, ligaram no rabicho, precisou de tempo para esquentar “as velas”. Sintonizado na rádio Colon, a música era boa e o sapateado rolou solto. Na propaganda todos paravam, escutavam Casas Pernambucanas e Lojas Polovi. Logo recomeçava, Teixerinha na gaita e um gurizão chamado Roberto Carlos, que fazia uns poucos dançar solto.

O gaiteiro chegou de bicicleta, junto de Vilian, justificando: “atrasei nuns cumprumisso”, mas Vilian garantiu que ele estava dormindo. Decerto bebera umas e outras. Rindo, ele tomou um bom trago, “prá afiná o gogó” e dedilhou no acordeom Todeschini de 120 baixos. “Eita gaiteiro bão…”. O povo sapateou nos tamancos e a dança correu solta. A cachaça também. Até a turma que dançava solto entrou no saracoteio.

A festa varou madrugada. O gaiteiro não dava ar de cansaço e o povo pedia bis. Lá pelas tantas a velha Paula apareceu com um violão para fazer homenagem aos noivos, mandando o gaiteiro parar. Todo mundo chiou. Seu Varte levantou-se e veio direto, dando de dedo: “Toca essa gaita!”. A velha Paula tentou argumentar, ele pegou o violão e partiu para cima dela. Ela ergueu o braço em defesa, o violão partiu-se em pedaços e ela berrou de dor. A turma do deixa disso cercou os contendores, a velha Paula chorava de dor, seu Varte era acalmado com mais cachaça. O gaiteiro botou o acordeom nas costas, subiu na bicicleta e sumiu na noite. O povo aos poucos foi se despedindo, a festa terminara.

No domingo acordei cedo. No meio dos restos da festa procurava meu soldadinho de chumbo. Escutei a velha Paula, de olhar esgazeado, fumando e tossindo na casa ao lado. Tinha um pano branco ao redor do pescoço, segurando o braço quebrado.

Como quem não quer nada fui para perto dela. Vai que ela me oferecesse mais um pouco de quentão frio.

 

Salustiano Souza

 

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