O velho e o menino (Hilton Görresen)

 

O VELHO E O MENINO

(homenagem a Hemingway)

 

O velho Maneco estava há três dias no mar, segurando na linha um enorme espadarte. Ele o havia visto por breve momento quando o peixe dera um salto fora d’água, as escamas rebrilhando ao sol. Agora, o peixe dava voltas sob a superfície, preso ao anzol. Estava finalmente se cansando.

As costas do velho ardiam, sob o peso do sol e pela fricção da linha que passara por detrás do corpo, sobre o ombro, quando a mão esquerda começou a ficar sem ação. Nesse tempo todo dormira apenas uns vinte minutos. Não podia se dar ao luxo de cair no sono pesado, embora fosse o que mais seu corpo pedia. Havia de estar desperto, com as mãos firmes na linha que corria sobre a borda da embarcação, indo terminar no enorme anzol abocanhado pelo espadarte. Não tinha fome, acabara de comer lascas de peixe cru. Outra vez praguejou: por que esquecera de trazer sal ou ao menos metade de um limão? Alguns peixes são enjoativos quando comidos desse modo.

O que mais lhe fazia falta neste momento era o menino. Joselito sempre o havia acompanhado nas épocas de vacas gordas. Agora, estava há 85 dias sem pegar nenhum peixe. Não era culpa do garoto, o pai o havia ajeitado numa outra embarcação, de maior sorte. Ele havia aprendido muito com o velho, seria um bom pescador, como pescadores seriam seus filhos e netos. Num país dominado pelas elites militares, pelos grandes usineiros e pelos plantadores de fumo não havia grande chance para os pobres e ignorantes. No entanto, o menino era esperto, se tivesse oportunidades poderia ser quem sabe um doutor. E o velho sorriu ao imaginar Joselito, alto e esguio, vestindo elegante terno escuro, com bigodes grossos, a maleta de médico na mão.

Não era só a falta de mão jovem para ajudá-lo na luta com o peixe, era a solidão que o encobria, feito nuvens escuras; era o companheiro a quem podia repassar sua filosofia magra ao invés de estar feito bobo falando ao barco, ao mar, ás nuvens e mesmo ao peixe que se debatia no fundo do mar, enganchado no anzol.

Cada vez que o peixe se aproximava mais do barco, completando os círculos que fazia, o velho recuperava mais linha. Uma hora o danado teria que subir à superfície, encostar na borda do barco; então ele poderia usar o arpão. Mas as costas ardiam, os calos na mão haviam estourado. O barco continuava se deslocando sempre para nordeste, ao sabor das ondas e conduzido pelas arrancadas do peixe.

As pálpebras pesavam, feridas pelo brilho do sol. Encostou-se na proa e fechou os olhos por um momento. Relaxou o corpo. Ao abrir novamente os olhos viu um vulto sentado na popa do barco. Era pequeno e magro. Esfregou os olhos, espantado. Quando pode divisar claramente a imagem, viu: era o menino, Joselito. Não havia dúvida, o menino estava ali, em sua frente.

Antes que pudesse fazer algum gesto, ou abrir a boca, o menino falou:

– Você precisa descansar, velho. Deixa que eu seguro a linha.

– Não, filho, é um peixe dos grandes, você não tem força para aguentar o tranco.

– Então deixe eu lhe massagear as costas. Trouxe um pouco do unguento que minha mãe usa para as dores do pai.

– Primeiro coma alguma coisa. Tem lascas de peixe-espada aqui na proa.

– Já fiz a refeição. Comi iscas de sardinha com pirão.

Ah, o pirão! Dona Santinha, mãe do garoto, fazia um pirão com o caldo do peixe que era de empanturrar-se. Sempre o convidavam para o jantar. Poucas vezes havia aceitado, sabia que uma boca a mais sempre era penoso aos pobres pescadores da região, como ele. A farinha era escassa, peixe era a sobra das poucas vendas para a subsistência.

Joselito, então, tirou do alforje de pano um vidro bojudo, destampou-o e meteu o dedo médio lá dentro, tirando-o enlambuzado com uma pasta esverdeada. Postou-se atrás do velho, levantou-lhe a camisa até o pescoço, com a mão livre, e começou a esfregar suavemente a pasta nas costas. Maneco sentiu um arrepio quando tocado pela pasta fria, depois acostumou e sentiu que o ardume ia se aliviando. O menino tinha as mãos leves, pensou, daria um excelente médico.

Agora estava mais animado, parece que as forças haviam redobrado com a presença do companheiro. Sentiu que o peixe estava em desvantagem. Pediu para o menino lhe passar unguento também nas mãos, nos frisos quase em carne viva que a linha lhe deixava. Feito isso, pegou o pano que usava para proteger as costas da fricção da linha, que podia lhe dilacerar a carne, e usou-o para secar as mãos. Tinha que manter sua firmeza.

Sentiu vontade de urinar. Agora, com o menino ali, podia se deslocar no barco mais facilmente, ir até a outra borda, sem precisar ficar segurando a linha. Dirigiu-se ao jovem:

– Segura aqui, filho, só por um momento.  Não deixe afrouxar. Se sentir muito peso, me chame.

Joselito ficou exultante em poder participar dessa grande façanha; não havia visto ainda o peixe, mas pelo jeito era mesmo enorme. Não fosse isso, Maneco já o teria puxado até o barco, enganchado pelas guelras e atirado no fundo da embarcação. Mas esse, teria que cansá-lo primeiro, levá-lo a uma penosa exaustão, o que já durava para três dias. Quem aguentaria mais, o velho ou o peixe?

Foi quando o espadarte deu um puxão violento. Desprevenido, o garoto foi lançado para frente, desequilibrou-se e escorregou pela borda. Com ele foi o rolo de linha que jazia no chão do barco. Quando o velho se deu conta, o barco já se afastara alguns metros do rapaz, que esbracejava apavorado. Era pescador, não nadador. O peixe aproveitara o afrouxamento ocasionado pela folga da linha e se afastou mais ainda até que essa se retesasse novamente, pois tinha a extremidade presa a um dos bancos. Desorientado, Maneco não pensou mais: tinha que deter o avanço do barco, pegar os remos e voltar para salvar Joselito. Puxou da navalha e cortou a linha bem onde esta se apoiava na borda de madeira. O espadarte, livre então, despachou-se, fazendo sumir o resto de linha que ainda flutuava.

Ao olhar para trás, não viu mais o garoto. Ali onde ele caíra, rebrilhavam pequenas ondas que feriam sua vista. Desanimado, sentou-se na proa e vergou o corpo. Seria penoso voltar à praia. O que haveria de dizer à mãe do rapaz?

Ficou alguns minutos ou horas – não se dava conta do passar do tempo – derreado, com as mãos calosas sobre o rosto. Depois, pegou os remos, colocou-os na água e virou a proa do barco em direção de terra. Enquanto remava, silencioso, começou a duvidar que tudo aquilo tivesse acontecido. Teria o rapaz aparecido a ele assim tão de repente? Ou seria coisa de sua cabeça, castigada pelo sol e pelo sono?

 

Hilton Görresen

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