Paraisar (Cristina)

Paraisar

Maria Cristina Dias – Olhar Passarinho

 

Dia desses um novo verbo surgiu inesperadamente para dar sentido a uma sensação que inunda a alma quando a hora de se desligar do mundo se aproxima. “Paraisar”. Paraisar, caro leitor, é o ato cada vez mais desejado de usufruir do paraíso, seja ele qual for.

Não sei se a palavra já existia antes, creio que não. Não consta do dicionário e o Google, que tudo sabe e tudo vê (temeroso isso) a troca por “paralisar”, o que, definitivamente, não é mesma coisa. Nada poderia ser mais antagônico.

O certo é que a tomei como minha desde o primeiro momento em que inesperadamente surgiu em uma mensagem rápida, de whats mesmo, para meu amigo poeta. Ser amigo de poeta tem desses privilégios. A gente pode inventar palavras sem ficar constrangido, debulhar-se em sentimentos sem parecer piegas, ser ridículo sem pudor. E o poeta amigo ouvinte faz eco à euforia e ainda concede a permissão para os delírios: “Paraíse-se! Passarinhisesse! Ser feliz é uma escolha (me apropriei)!”, escreve ele, acolhendo a loucura da amiga que voa da realidade sem tirar os pés no chão.

Diante disso, confesso que uso o novo verbo sem culpa. Permito-me, sim e critique-me se achar que deve.

As manhãs começam muitas vezes antes do sol dar o ar de sua graça e, ligeiras, se desfazem em tardes agitadas e noites insones. Um dia, outro dia, a semana já passou e os compromissos ainda não. O trabalho se multiplica e, ladino, se disfarça de prazer para avançar mais e mais na vida, se entranhar em todos os momentos.

Mas eis que chega a hora de paraisar, de se permitir. A bagagem é arrumada ao longo da semana para não tomar muito tempo. Uma lista na porta da geladeira e uma caixa de papelão no canto do quarto vão antecipando o momento de sair do mundo e espairecer. Na caixa cabe de tudo. As toalhas e lençóis limpos, a lâmpada que precisa ser trocada e o cabideiro novo, as linhas e agulhas para as manhãs ensolaradas de domingo, o livro amigo para as longas noites – e no final até o trabalho que se esgueira para conseguir mais alguns momentos de atenção.

Como bem lembrou meu poeta amigo, paraisar caminha lado a lado com passarinhar. E também com silenciar, com sentir o vento frio cortando a pele só por mais um instante ou respirar fundo só pelo prazer de respirar mesmo.

Após criar o verbo, tento entendê-lo. Palavras são assim, independentes, ainda mais quando expressam ação. Talvez paraisar seja reflexivo. Vou paraisar-me resignadamente, deixando-me ser agente e, ao mesmo tempo, sofrer a ação da palavra. Por quê, não? Certezas não há nessa vida, mas me parece que existem indícios fortes de que cada um só pode paraisar-se a si mesmo. Coisas a se observar com o tempo, paraisando-se descompromissadamente enquanto isso.

 

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