Pirenópolis – Janus e a meia ponte

O planalto central transpira cerrado: vegetação casquenta, tiguerada, suberosa; clama aos céus, joelhos e juntas dobradas. Abaporu de Tarsila do Amaral espreita-nos disfarçadamente. Assenta raízes no descampado.   Percebe-se na paisagem esmaecida um pedido disfarçado de clemência. Não por acaso, contrariando o cenário, chove torrencialmente nos últimos dias – tardezinhas de dezembro, 2011. E que aguaceiros!  A água brota de onde menos se espera, ganha corpo, avança, toma ares de córrego novo. Barulhentos, emborcam.  Aqui e acolá, saltando entre reentrâncias de metaquartzito, um calango mira de canto de olho… Estranhos por ali, uai!

Ora, estávamos em Pirenópolis, depois ficamos sabendo: cidade histórica. O Rio das Almas cruzando sorrateiro, a meia ponte, o casario com cara do século XVIII.  Fantasmas parecem circular à noite, vasculham pousadas. Escravos portam bolsas de diamante, e as depositam nas margens da atrevida cachoeira, abaixo da meia ponte, aos olhos da Santa Padroeira, Nossa Senhora do Rosário.

A pousada, ao alto, foge do padrão; inova, projetando amplos espaços ajardinados. Apartamento rústico, mas confortável. Lençóis macios, crocantes.  Anoitece e nos recolhemos, sem não antes auscultar vozes, elucubrações: caravanas invisíveis empilham arroubas de ouro na praça; fidalgos portugueses confabulam.

O roteiro, com o Paulo e a Júlia que nos ciceroneiam, inclui achegos a remansos e cachoeiras, percorrer trilhas, excursionar nas bordas dos Pireneus, montanhas que circundam o imenso vale de São Patrício. Antes, porém, logo cedo, vadiagem, percorrer a vila, caminhada de reconhecimento; como dizem os topógrafos: levantamento expedito.

Percebe-se o capricho da boa gente: o casario histórico, tipicamente lusitano, conserva traços de originalidade. Predominam pequenos bangalôs esbranquiçados, janelas miúdas pintadas de azul. Repetem-se monoliticamente. A Loja Maçônica, misticidade aflorando, impecavelmente preservada, desperta a atenção. As ruas calçadas com pedras escuras, afinadas e irregulares, revelam tipicidade local – a abundância de rochas naturais – terra de mineração.

O rio, a denominação, segundo constatamos em documentos da Igreja Matriz, deve-se ao lusitano Manoel Rodrigues Tomar. Se lograsse êxito na mineração de diamantes, o primeiro recurso obtido seria destinado a encomendar missa às almas. As almas, agradecidas, brindaram a cidade com águas abundantes e cristalinas.  Secular, o rio das Almas corta a cidade dorsalmente, testemunha ocular da história.

E a meia ponte – famosa meia ponte de Pirenópolis –, embora parecendo pouco adequada para os novos tempos, abriga nas cabeceiras vistosa laje; justamente ali, e àquela hora – sete da manhã – um grupo de pessoas – homens mulheres e crianças –, cantam e dançam, parecem ambientados; e vendem artesanato: folhas de palmeiras trançadas, enormes palmas.  Adiante, no portal turístico, apanhamos alguns folders…  Informam sobre as tradições culturais, evocam a cultura moura: cavalhadas, festa do divino, desfiles, fandangos, artesanato, ambientalidades e afazeres típicos.

Eis que encontro o que subliminarmente procuro: sebo. Não sem emoção, adentro a construção histórica – ares de anos rodados – percebe-se. Vasculho, procuro por livros que falem da boa terra. Dou sorte, encontro uma joia: “Meia-Ponte do Rosário, Pirenópolis”, de Luiz Aquino (Crônicas). Depois, ficamos sabendo: no mesmo local há uma mostra das obras de Roque Pereira – coincidência das coincidências.

Quanto à jornada, refeitas as energias, obstinados, partimos; destino: cachoeira do Rosário, rio Araras, nascentes do Tocantins; sim, do grande Tocantins da bacia amazônica. Após percorrer bom trecho, rompendo vaus, buritizais e moitas de guarirobas, cruzando fazendolas cobertas de braquiárias africanas, e áreas degradadas: resíduos de mineração expostos e amontoados a céu aberto, eis que no alto do vale, no platô, nos deparamos com um ambiente paradisíaco: o rancho de Demócrito Pereira.

O lugarejo surpreende: o rancho, os pilares sustentam-se em lâminas de metaquartzito; os acessos, caprichosamente revestidos, emprestam rusticidade à paisagem. Somos recebidos por um jovem simpático e falante – fala cantada –, apresentou-se como Renato – o cozinheiro. Incontinenti nos conduz até à varanda, mostra o vale de São Patrício. Aproveitamos, batemos foto. Renato informa que um grupo acabara de partir, mostra a trilha na mata. Pede que tenhamos cuidado. Há percalços, declividades, degraus foram carregados pela última enxurrada, comum no verão.  Antes da partida, solícito, nos convida para provarmos um aipim frito com torresmo.  Faz questão de dizer: sintam-se à vontade, a cachaça à mesa ao lado é goiana, e da boa.

Como não queríamos perder a vazada, partimos. Pé na trilha.  Cajados são fornecidos – uma vara de pau – espécie de muleta –, único meio seguro de movimentar-se nas ribanceiras.  Pouco a pouco nos aproximamos do grupo, sendo recebidos por Demócrito, o guia. À frente seguia um casal, Adailton e sua esposa, ambos de Brasilândia.

Demócrito, figura simpaticíssima, nos recebe amistosamente, de forma efusiva. Baixo, falante, olhos amendoados, cabelos escuros e lisos, cajado à mão, mochila às costas – dada a dificuldade de movimentação –, nos orienta como portar-se para evitar quedas e sobressaltos.  Única recomendação: não sair da trilha, pois há risco de cobras no trecho. A revelação nada amistosa mexe com o aparente sossego de Ângela e Júlia. E mais, arrepiam-se, quando num trecho Demétrio subitamente para, respira fundo e nos alerta; insinua a possível presença da víbora – cheiro acre no ar; para nossa sorte, nada vemos no entorno.

Demócrito, depois ficamos sabendo, vem travando uma luta desigual. Opondo-se à mineração predatória com raízes históricas em Pirenópolis, ousado, estabeleceu em apenas três alqueires de terra uma espécie de oásis representativo da rica paisagem regional. A paisagem, naturalmente, desperta a atenção dos visitantes. Encanta. Mais ao alto, próximo do rancho, o cerrado raquítico, retorcido, e, nas proximidades do córrego Araras e da Virgem, outra nascente, assim denominada por ele, desponta uma vegetação robusta, viçosa, própria das grotas úmidas – chamada mata de galeria.  Buritizeiros, cipós, canela de grota, jatobás e árvores entroncadas dominam a paisagem.  O pau breu – medicinal – exala essência incomum, agradável.

No fundo do vale, protegidas pela vegetação… Águas cristalinas. Água mineral, diz Demócrito.  Os paredões laterais, íngremes e entrecortados, expõem o tempo geológico: mica embaixo – rocha escura, metaquartzito laminado ao meio, parecido com mármore e, na parte superior, aflorando, a rocha já deteriorada – o neossolo: uma mistura de areia e material sólido carcomido pelo intemperismo secular.

A região, estudos geológicos apontam, no período Devoniano (era dos peixes) – há cerca de 400 milhões de anos –, estava coberta por extenso mar; daí a formação sedimentar, tipicamente do altiplano central. A partir de então, diante do recuo marinho, gradativamente ao longo do tempo, adquiriu os contornos e tonalidades atuais. Fato marcante: a missão Luiz Cruls (1894) –- Comissão do Planalto Central do Brasil – estuda a flora, fauna, geologia, tornando-a conhecida; elabora minucioso relatório que, segundo consta, visava encontrar local apropriado para a fundação da futura capital do país – mais tarde Brasília.

Daqui, discorre Demócrito, saiu muito diamante, muito mesmo.  Monturos, escolhos e matacões foram o que restou, mais nada. O povo mesmo, pouco tirou proveito; os abastados levaram tudo. No caminho, no rastro, a destruição: mais escórias, muitas escórias aqui, acolá, por todo o lado. Pondera Demócrito, finalmente a região vai se recuperando, o meio ambiente respira aliviado, mas não sem esforço.  Quando adquirimos esse trecho, eu e minha esposa – professora e também ecologista de primeira hora –, projetamos recuperá-lo, e fazer do sítio local de visitas, o nosso ganho pão. Imaginem se alguém, exceto a gente, botou fé no projeto.  Chamaram-nos de lunáticos. Apostaram no pior. Não desistimos nunca, e nunca desistiremos; mostrava determinação Demócrito.

Tomado de entusiasmo, olhando as ribanceiras, bate no peito… O que vocês acham:

– Valeu ou não a pena?  Todos o aplaudimos… Eis o novo Robin Hood do cerrado.  Demócrito ergue bem alto o cajado, e brada:

– Agradeçamos a Deus por isso, por essa paisagem maravilhosa.

Motivados, seguimos adiante, passando por esplendorosa queda d’água (rio Araras). Desprendendo-se do paredão de rochas, sacode, esguicha e se espalha num dócil remanso, forma reservatório cristalino, acolhedor. Adailton e a esposa banham-se; sacudimos a água.  Perguntamos por peixe. Esse é um mistério dessas nascentes, informa Demócrito, apenas alguns pequenos lambaris, e nada mais.

Curiosidade: a serra dos Pireneus – evoca similar na Europa –-, e segundo os historiadores, a denominação foi dada por catalães, habitantes espanhóis presentes na região, ainda no século XVII. O espinhaço dos Pireneus, é bom que se diga, rico em nascentes, divide o Brasil ao meio: metade das águas se dirige para a bacia Amazônica – ao norte –-, e a outra, para a bacia do rio Paraná – ao sul.

Agarrado a um possante cipó decumbente no meio da trilha – Demócrito faz questão de enfatizar: Pirenópolis é dessas vilas que viveram várias ecdises: o ciclo da mineração com suas mazelas, a exploração predatória dos recursos naturais, os enriquecimentos de poucos, mortes estúpidas, a desgraça, o abandono de muitos, os rejeitos e cavas, cicatrizes expostas. O desmatamento desenfreado, o cerrado cedendo espaço ao pasto, ao boi.  O resgate do patrimônio histórico, coisa recente, trouxe algum alento, mas ninguém vive somente do passado, precisávamos de novas alternativas, de algo a mais.   A descoberta do ecoturismo, do valor da paisagem regional, das matas de galeria, do mistério e das riquezas do cerrado: fauna e flora, do folclore e da gastronomia regional, abriu um novo ciclo, traz alento, renovação. Apostamos na sustentabilidade: desenvolvimento econômico e social com equilíbrio ambiental. Muitos questionam, principalmente os mais tradicionais.  Há uma chaga aberta; precisamos cicatrizá-la aos poucos; paciência também cura.

E reitera: nós, filhos dessa novíssima geração, não só acreditamos nesse novo olhar, como estamos investindo nele. Pessoas de formações diversas atuam conosco. Bem informar, bem conviver com a natureza, eis nosso horizonte.  Aqui – o planalto central: imenso platô – racha-se ao meio: espigão central, esteio, cumeeira, evocando a meia ponte.  As bacias hidrográficas, as nascentes – qual Janus de faces opostas, distancia-se: marcham para o norte e para o sul. O ciclo da mineração, exaurido, faz contraponto aos serviços ambientais. Novos lides à vista.       Alvissaras!  A valorização do homem não contra a natureza, mas a favor da mesma, sinaliza tempos de maturidade.  Concordamos.  Faz bem à alma ouvir pessoas jovens e idealistas como Demócrito.

Depois da aula sobre meio ambiente, de nascentes, de natureza, exaustos, já no meio da tarde, adentramos ao rancho. Descanso e comida, todos pediam. Via-se nos olhos.  Renato não perdera tempo: apresenta o fruto de seu trabalho: bom de cozinha, fogão à lenha, oferece uma saborosa comida goiana: macaxeira ao molho de frango caipira, couve, quiabo e abóbora refogados, nacos de carne de porco, arroz com pequi, feijoada, torresmo crocante, porções de guariroba, saladas, pimenta e jurubeba, e saborosa sobremesa: baru e cagaita, frutas nativas, paçoca de pilão, doce de mangaba e pequi ao caldo. E precisava mais?: provoca Paulo.  Servimo-nos à vontade, direto no fogão.  Enquanto almoçamos, Demétrio fala de seus projetos futuros. Melhorias, muitas melhorias, mas sem essa de energia elétrica, cães e gatos. Ali só a selva, a natureza virgem e indomável – os animais selvagens que podem ser vistos de manhãzinha ou no começo da noite. Ressabiados, devagar, estão retornando. Bato palmas, e eles aparecem, fala Demócrito orgulhoso, inclusive uma jaguatirica.

Alguns móveis rústicos: mesas e bancadas, torneados a capricho, chamam a atenção de Júlia, estudante de arquitetura na Universidade de Brasília. Demócrito informa que o marceneiro e artista é seu pai, Roque Pereira, para produzir a mobília utiliza sobras de madeira e material de rejeitos, e aí reside a inovação.  Originalíssimo, alia praticidade a design ousado.  O poeta e cantor Arnaldo Antunes, ao descobri-lo, fez questão de prestigiá-lo, mobiliando sua morada com tais raridades.  Júlia faz questão de conhecer o local de trabalho do artista, lugar arredio – Mata Velha – nas proximidades de Pirenópolis.

Após tirar uma boa soneca em redes adrede instaladas na cumeeira do rancho – descansados e deslumbrados –, partimos não sem desmedida dose de emoção. E Demócrito, o anfitrião, não perde a vazada, aproveita o momento; brada eufórico:

– Voltem, voltem sempre, teremos imensa satisfação em recebê-los novamente no sítio das nascentes – córrego da Virgem e riacho Araras –, cabeceira do vale de São Patrício.

Ao partirmos, num gesto ousado, o novo Robin Hood do cerrado ergue o cajado bem ao alto.  Acena calorosamente.

( Pirenópolis, 21 de dezembro de 2011).

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