Por que me tornei escritor
Com a matéria-prima de graça, sendo eu uma criança pobre, meu pai dizia que eu poderia me libertar e me tornar um homem melhor que um caminhoneiro; segundo ele, eu poderia, por meio da inteligência, ir a lugares mais longe do que ele ia em seu caminhão, transportando tubos pela antiga Transportadora Rodotigre.
Meus pais foram cruciais no estímulo à minha imaginação. E o mais bonito de tudo: foram sem serem intencionais, não sabiam exatamente onde aquela estrada daria, não tínhamos dinheiro pra pagar escolinha disso e daquilo, curso de inglês ou de artes marciais, escola de língua ou de música.
Na realidade, sequer tínhamos dinheiro pra livros. Meu contato com os livros se dava na escola (que naquela época não tinha biblioteca), na cartilha Caminho Suave e por meio dos vendedores, que vinham de carro e apresentavam grandiosas enciclopédias, que podiam ser pagas à prestação.
Minha mãe, semianalfabeta, como não conhecia o significado de palavras difíceis, mas não queria passar a impressão de ignorante, inventava significados pra elas quando eu chegava e perguntava coisas que ela não sabia. Um dia li a palavra hidrômetro e achei que fosse uma profissão, então disse pra ela, “Mãe, quando crescer eu quero ser um hidrômetro”, pois eu queria impressioná-la.
Então ela me disse que eu poderia ser o que quisesse, e hidrômetro parecia ser alguma coisa importante. Pensando ser adulto, ao movimentar dentro de mim palavras difíceis, eu comecei a dizer pra todo mundo que eu seria um hidrômetro quando crescesse. Mas o mais impactante era que, quando mais adulto eu queria me mostrar aos outros, sendo um hidrômetro, mais criança eu permanecia.
Com meu pai o vínculo foi mais na veia. Ele, querendo uma vida diferente pra mim, sempre repetia que o conhecimento poderia me tirar dali: eu não entendia, porque na minha cabeça de criança eu adorava aquele DALI: o porco, as galinhas, o pé de grumixama, as tripas de galinha secando no sol, as sardinhas que meu pai pegava, defumando no forno a lenha, ver minha mãe cantando músicas caipiras enquanto estendia roupas no varal, ou quando passava e engomava o colarinho das nossas camisas.
Mas creio que fosse por causa das necessidades: da luz cortada algumas vezes, da televisão que só funcionava na base da porrada, do pedaço de queijo com pacotinho vermelho que ficava na geladeira, como uma tentação, esperando o dia que chegasse alguma visita, porque meu pai dizia que sempre devíamos deixar a melhor parte para os amigos.
Um dia, ele, meu pai, perguntou se eu queria ser o homem mais inteligente do mundo. Eu fiquei com medo porque achei que ele tinha visto meu boletim, já que eu não ia bem em matemática e era péssimo em contas de divisão com vírgulas. Quando voltou de viagem, semanas depois, perguntou de novo: Filho, quer ser o homem mais inteligente do mundo? Minha negativa dessa vez teve outro motivo: ouvi minha mãe falar pra minha tia que o Papa era o homem mais inteligente do mundo, porque ele falava “tudo quanto é tipo de idioma”, segundo a conversa.
Na hora que meu pai perguntou lembrei que eu não queria ser Papa, porque queria casar com a Denise, que tinha 9 anos, e viver com ela para sempre. Não desistindo, meu pai perguntou pela terceira vez, depois de outro retorno, mas dessa vez eu aceitei.
Tudo porque minha mãe andava bem adoentada das vistas, como ela dizia, e não conseguia nem ver direito as imagens de um livro que a gente tinha chamado “Vida de Jesus”. Era um livro de capa dura, com letras douradas, com a história de Cristo e muitas imagens em estilo renascentista.
Pra mostrar que eu vinha aprendendo muita coisa, passei a ler pra ela, na beira da cama, aquele livro sobre aquele homem que parecia, na minha cabeça, um super-herói, que tinha vindo pra salvar o mundo! E foi lendo-o, que percebi que tinha muita coisa ainda pra aprender, tantas palavras tinha ali que eu nunca tinha ouvido, parecia invenção.
Por isso aceitei o convite do meu pai e falei Sim. Ele me disse que iria viajar e quando voltasse traria algo que me transformaria no homem mais inteligente do mundo. Nos dias em que esteve no Ceará, pra onde viajou, eu fiquei imaginando o que traria: um tapete mágico, uma lâmpada, uma caixa, uma varinha, uma poção, um feitiço que me transformasse num homem grande e barbudo.
Quando ele chegou vinha com uma caixa bem grande nos braços, tinha dificuldade pra carregar. Aquilo foi depositado na sala com todo cuidado. Nós dois ficamos olhando pra caixa, e ele me disse: Abra.
Eu abri, não sei se é força da imaginação que preenche as lacunas da memória, mas parece que me vejo fazendo aquilo como um ritual, tão lento eu desenrolava as folhas de presente. Quando abri, me deparei com doze objetos que me fariam o homem mais inteligente do mundo. Ele ainda disse:
Cuide, pois vou pagar em dezoito prestações.
Eram DOZE LIVROS, duma enciclopédia chamada O MUNDO DAS MARAVILHAS. Aqueles livros foram uma revolução na minha cabeça. Meu pai tinha se sacrificado pra me transformar no homem mais inteligente, senão do mundo, mas pelo menos do mundo a que ele pertencia: Rua Crispim Mira, número 25, bairro Guanabara.
De lá até aqui, eu descobri que foram as palavras que me tiraram dos sacrifícios financeiros da época, mas não me libertaram, graças a Deus, dessas histórias, das coisas da minha vida, dos protagonistas e também escritores da minha trajetória.
Descobri que sou um contador de histórias, que adoro contar histórias ou em forma de poema, ou em forma de crônica, até mesmo história para criança, só não gosto mesmo das histórias para boi dormir. Gosto de contar histórias para preservá-las. Gosto de inventar histórias, inverter histórias, fazer parte delas. É pra contar histórias que me tornei escritor.