Romeu, Romeu, agora tu é meu!

Logo que desembarcaram do ônibus, a mulher detestou a pequena cidade. Era uma mulherzinha baixa, gordota, cabelos curtos, jeito arrogante. O marido, Doutor Juvêncio, tinha vindo para assumir a chefia de uma repartição pública, nomeado pelo interventor militar da região.

Autoritária, convocou o Zé Gerôncio para carregar suas malas até um táxi. A primeira impressão do carregador sobre ela também não foi boa. E a externou para os amigos com a irreverência e o humor dos açorianos do litoral:

– A mulher parece uma paca com andar de pombinho. Quer ser a dona do mundo.

Já tinham casa alugada. Era um prédio de esquina, com dois pavimentos, nas imediações da praça da igreja. Dali Doutor Juvêncio poderia ir a pé ao serviço. Esse Doutor Juvêncio era um magrinho estorricado, de bigodinho fino, cabelos ralos, óculos sem armação. O terno cinzento que sempre usava parecia feito para crianças. Tinha um andar marcial, de passinhos curtos.

Vieram com as duas filhas solteiras, Juliana, a mais velha, e Julieta. Essa última era a mais bonitinha delas, embora todas lembrassem a figura da velha, baixas e gordotinhas. Não passaram despercebidas aos rapazes, em cidade pequena tudo o que chega é novidade.

O velho assumiu seu posto mostrando austeridade. Sua figura tesa e diminuta lembrava um oficial nazista. Quando irritado, tremia o bigode sobre os lábios secos. Vistoriou toda a repartição, criticou a desordem de algumas mesas, colocou para trabalhar os encarregados da limpeza. Depois, convocou reunião com os funcionários de chefia. A casa alugada tinha um quintalzinho agradável na parte dos fundos. Ali, dona Jurupaca, apelido que ganhara da irreverência popular, encheu de vasinhos com flores, palmeirinhas, samambaias.

Se não tinha simpatizado com a pequena cidade, foi esse gosto por folhagens que aprofundou sua antipatia, notadamente pelos integrantes da família Santos Vieira. Juca Santos Vieira e dona Marianinha eram seus vizinhos de muro. Pouco se falavam, talvez um cumprimento seco, social. Desgraçadamente, uma tarde de sábado o cachorro dos Vieira pulou o muro e fez um estrago medonho nas plantinhas. O bichinho malhado brincava serelepe derrubando vasos, que se estatelavam no chão de cimento, espalhando a terra adubada. Dona Jurupaca veio lá de dentro, horrorizada. Seus olhinhos se apertaram de ódio. Chamou o marido, que foi buscar a espingarda de pressão e meteu chumbo na perna do cachorro. Este ganiu com desespero e arrastou a perninha ferida até o muro, que conseguiu escalar com dificuldade.

Veio daí a inimizade. Por uma sucessão de enlaces – que vinham desde os tempos em que a cidade era simples freguesia – a família Santos Vieira, com suas diversas ramificações, abarcava grande parte da população local. Era a miscigenação de Santos com Vieiras, Vieiras com Silvas, Santos com Oliveiras, Vasconcelos, Fuads, Schneiders… Gente de raiz fincada no solo da região. E todos entraram na batalha; quando reconhecia um deles, a velha atirava com raiva o cuspe no chão, num gesto de repulsa. Passou a sair pouco de casa. As filhas estavam proibidas de sequer dirigir cumprimento a membros daquela “máfia nojenta”. Eram eles contra toda a cidade.

Doutor Juvêncio sentia-se isolado no serviço; parecia-lhe que os subordinados atiravam risinhos e deboches às suas costas. Apertou o crivo contra eles, exigindo maior produtividade. Por pouca coisa, ameaçava colocar o funcionário à disposição da diretoria. Corria à boca pequena que sua grande autoridade limitava-se ao espaço da repartição; em casa, a mulher o trazia sob rédeas, era ela quem dava a palavra final, e também a inicial.

O seguinte fato virou gozação municipal, contado até hoje pelos mais velhos: Doutor Juvêncio contratou a diarista Dona Antonia, mãe do contínuo Marquinho, para dar uma geral em sua casa. O rapaz passava o diabo no serviço, abaixava a cabeça e fazia tudo que o chefe determinava. Em compensação, em casa derramava todo seu fel contra ele, não se esquecendo da esposa, que às vezes o utilizava para pequenos serviços. Era um tal de Dona Jurupaca pra lá e pra cá, casal desgraçado, feitores de escravos. A ingênua senhora acreditava que fosse esse o nome da “veia”. Terminada sua tarefa, Dona Antonia foi procurar a patroa para receber o pagamento. Aproximou-se da mulher e chamou-a timidamente: Dona Jurupaca…  Ambas sofreram um ataque violento: uma de apoplexia, outra de cagaço.

A situação era essa, quando sua filha Julieta conheceu o Romeu Perna de Moça. Simpática, alegre, a moça havia arrumado algumas amigas na cidade. Uma delas, Cibele, filha de sua costureira, foi quem o apresentou, na saída da missa matinal de domingo. Julieta interessou-se pelo belo rapaz, falante, de pele lisinha. Marcaram encontro no cinema, sessão das 19 horas. As moças costumavam deixar um lugar vago ao seu lado nas poltronas; ao apagar das luzes da sala, os seus eleitos se achegavam sorrateiramente e ocupavam o lugar. Foi o que fez o Perna de Moça. No meio do filme, já estavam de mãos entrelaçadas; até o “happy end” haviam estourado meia dúzia de beijos.

Seus encontros começaram às escondidas na casa da Cibele, sob o pretexto de experimentar suas roupas. Depois evoluíram para lanchonetes, festinhas, jogos de futebol de salão na cancha central; Romeu era atleta do time da Ideal Navegações. Após os jogos saíam para namorar na pracinha, debaixo da grande figueira.

Da sacadinha de seu sobrado, defronte à praça, a viúva Dona Zita, apelidada de Asa Negra, uma das maledicentes municipais, escandalizava-se com os agarros do casal (mas não deixava de observá-los atentamente). Na primeira oportunidade, foi contar aos pais que não só a filha mantinha um namoro escondido, mas que o cara era contraparente dos Santos Vieira.

Conselho de guerra. Chamaram a garota, que veio desconfiada.

– É verdade que você anda de namorico por aí?

– Quem falou isso?

– Não tente disfarçar. Sabe quem é ele?

– Tá bom. O nome dele…

– Não interessa o nome do crápula. Sabe de que família ele é?

– Não perguntei. Não me interessa. E não é namorico, nós nos amamos.

Foi proibida de sair de casa. E só poderia ir a algum lugar acompanhada da irmã, até que conseguisse extirpar aquele cancro do coração. Mas não adiantou, Julieta sempre dava jeito de uma fugidinha, por rápida que fosse, para encontrá-lo ou para mandar recado. O que tinha ela com as inimizades dos pais?

O povo da cidade sabia bem da história. Caçoavam, faziam piadas. Comentavam a coincidência dos nomes com os personagens de Shakespeare.

– Coitados! Tomara que não morram no final – dizia dona Mocinha, a costureira.

Jovens irreverentes passavam de bicicleta pela casa de esquina gritando:

– Romeu, Romeu, agora tu é meu!

A velha se remordia de raiva, rogava maldições, olhos voltados para o céu.

Uma tarde, quando saiu para ir à padaria, não encontrou mais Julieta em casa. Mandou emissários a procurarem na “toca do inimigo”, isto é, na casa da família do Perna de Moça. Ninguém sabia de nada. Romeu também havia desaparecido.

Dias depois, veio uma carta da filha: “Mamãe e papai, não se preocupem comigo. Consolidei minha união com o Romeu. Estou feliz. Se puderem me perdoem”. Esse “consolidei minha união”, em linguagem popular, queria dizer que a vaca foi pro brejo.

Doutor Juvêncio pediu transferência para outro estado. Ao embarcaram no ônibus para sumir daquela cidade, a mulher tirou uma faquinha da bolsa, rapou a terra da sola de seu sapato e deu uma cuspida de desprezo no chão.

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