Ronald Fiuza – Discurso de posse

Senhor Presidente da Academia Joinvilense de Letras, Acadêmico Milton Maciel

Senhor Vice-presidente Acadêmico Carlos Adauto Vieira

Senhor Secretário geral Acadêmico Paulo da Silva

Autoridades aqui presentes

Senhoras Acadêmicas e Senhores Acadêmicos

Senhoras e Senhores

Quero inicialmente agradecer a todos os acadêmicos, muitos deles conhecidos de longa data, pelo voto generoso que possibilita minha admissão nessa Academia. Agradeço especialmente a meu amigo Acadêmico Apolinário Ternes, que me introduziu de maneira tão gentil.

Essa é uma noite diferente, em que a Academia Joinvilense de Letras acolhe não um literato, mas um médico e não de Joinville, mas mineiro de Belo Horizonte. Para justificar a ousadia de meu pedido e abonar a liberalidade dos acadêmicos ao me aceitar, peço licença para contar algumas passagens de minha vida que possam ilustrar como a Medicina a moldou e como a Literatura sempre esteve presente.

Nasci na capital de Minas, mas me criei no interior. Pitangui é uma cidadezinha antiga, do tempo da Colônia. Sou filho do Seu Hélio, o farmacêutico da cidade e da Dona Maria Iris, mãe em dedicação exclusiva, natural de Abaeté, a poucos quilômetros dali. Sou então mineiro da gema. Falo uai, gosto de tutu de feijão, de pão de queijo, torço pelo América Mineiro. Escolhi Joinville.

A escolha ocorreu depois da residência médica. Meu colega Djalma Starling e eu pesquisávamos o mercado de trabalho no Google da época, o Guia Quatro Rodas. Ficamos interessados em uma cidade de 126 mil habitantes no norte de Santa Catarina, industrializada, boa qualidade de vida, perto do mar. Planejamos uma viagem.

Aqui nos recebeu o tio de um amigo, também mineiro, também médico e, naquela época, vereador em Joinville: Dr. Violantino Rodrigues. Recepcionou-nos com afeto conterrâneo. Depois de nos mostrar a cidade e o hospital levou-nos para um passeio de barco pela Baia da Babitonga, isso em dia ensolarado. Concluímos que era o paraíso. A cidade era mesmo ótima, a baia lindíssima, mas o sol foi blefe.

Fui sempre um escravo da leitura, mais do que deveria. As palavras dominaram meu imaginário e permearam minhas decisões.

O vício começou já em Pitangui, quando minha turma de adolescentes criou o hábito de se reunir nos fins de tarde, em conversas de futebol. Com o tempo o grupelho ampliou seus interesses, abrindo espaço para filmes e livros. No início, o sarau do meio-fio se animava com livrinhos baratos, desses de banca de jornal. Lembro-me do detetive Shell Scott, um herói de todos nós. Logo melhoramos o nível, passando pelo Tom Sawyer de Mark Twain, pelo Drácula de Bram Stoker e pelo Mundo Novo de Aldous Huxley. Quando li A Cidadela de Cronin, confirmei o desejo de ser médico.

Na faculdade, agora em Belo Horizonte, os textos médicos dominaram, mesmo sem impedir leituras de história e de filosofia. Afinal, o movimento estudantil e o combate à ditadura assim o exigiam.

Já formado, fui passar uns tempos no exterior. Quando estava a completar meu período de bolsista na Alemanha, recebi proposta para ficar definitivamente lá, como neurocirurgião efetivo do Hospital Universitário de Munique. Era quase irrecusável. No meu angustiado caminho para a decisão pesou uma frase, simples, de Fernando Pessoa: “Minha pátria é a língua portuguesa “. Voltei para Joinville.

Voltei e virei joinvilense. Vivemos uma simbiose, a cidade e eu. Conheço as pessoas e elas me conhecem. Joinville me impulsionou e eu levei a Medicina de Joinville a muitos lugares. Tenho filhos e netos aqui nascidos. Minha mulher é manezinha da Ilha, mas passou aqui muito de sua vida. Aprendi a falar alemão, gosto de hackepeter, torço também para o JEC.

E aqui me tornei médico em tempo integral. Vivi medicina, li medicina, respirei medicina. Fui a congressos, visitei serviços, conheci o mundo. Envolvi-me em política de saúde, fiquei mais conhecido, diverti-me, incomodei-me. Agora, quase aos setenta, continuo gostando de ser médico, continuo me emocionando ao abrir a porta do consultório para o próximo paciente e sentir qual o desafio ele me trará. Continuo lendo muito.

Nunca parei de ler, geralmente três a quatro livros ao mesmo tempo. Durante meus 44 anos de Joinville tive tempo para descobrir os clássicos, estrangeiros e brasileiros. Os russos me fizeram descobrir que era possível ler um livro de mil páginas fascinado o tempo todo. Passeei pelos gregos, pelos britânicos e pelos franceses, pelos alemães, italianos, espanhóis e muito pelos portugueses. Foi entretanto um brasileiro, Machado de Assis, que me fez sentir como a língua pode ser bela, que me fez entender que literatura é uma arte especial. Fiz uma boa biblioteca. Capitulei aos e-books.

Escrever sempre foi mais complicado. A folha em branco me angustiava. Redigi por obrigação as composições do colégio. Por ofício passei a escrever artigos científicos e depois ensaios corporativos ou políticos, cometendo ainda discursos, editoriais e chegando a rabiscar alguns livretos.

O livro sobre a biologia da consciência foi diferente. Mostrou-me como escrever pode ser envolvente. Foi um ensaio de divulgação científica e representou o arremate de anos de estudos e descobertas, de muitas perguntas e de algumas respostas. Escrevi então por necessidade íntima e aí, descobri o prazer.

Senhores Acadêmicos, Senhoras Acadêmicas

Ao homenagear o último ocupante desta cadeira, peço a atenção sobre a abertura e simpatia com que esta Academia trata os homens de ampla cultura, independentemente de serem escritores de profissão e vocação. Cyro Ehlke foi um profissional liberal, também encantado com a escrita. Catarinense de Canoinhas e depois de Joinville, foi advogado e professor. Muito envolvido em atividades culturais, destacou-se na pesquisa e divulgação histórica. Dedicou-se à saga dos bandeirantes e tropeiros no planalto catarinense, examinando com lupa a ocupação do Contestado. Aqui, em sua terra adotiva, uniu-se a seu confrade Apolinário Ternes, para publicar importante síntese sobre a fundação e povoamento de Joinville. Desta maneira ele concluía seu trabalho: “Assim foi a Joinville dos primeiros anos. O loiro imigrante trouxe, de sua Pátria de origem, a cultura, a civilização, os costumes e as tradições, as transmitiu a seus filhos e estes a seus netos, inclusive o hábito da língua alemã. Hoje as novas gerações, totalmente assimiladas, pouco ainda falam na língua de Goethe…Permaneceu e permanecerá, entretanto, a herança de bons valores morais e espirituais trazidos pelos primeiros imigrantes”. Acadêmico, maçom e nome de rua, Cyro Ehlke deixou sua marca na história de nossa cidade.

Cabe-me ainda apresentar o Patrono da cadeira e trago com prazer o nome de um colega de profissão. Trata-se do Dr. Robert Avé-Lallemant, médico alemão que nos legou um belo retrato da Joinville recém-nascida. Avé-Lallemant formou-se em medicina na Alemanha e estabeleceu-se no Brasil. Ao clinicar no Rio de Janeiro, destacou-se ao identificar importante surto de febre amarela, só posteriormente reconhecido pela Academia de Medicina. Foi então nomeado diretor de um sanatório e chegou a trabalhar no Conselho de Saúde do Império. Retornou à Alemanha por problemas de saúde da esposa. Quando voltou mais tarde ao Brasil, veio como explorador. Fez longas viagens pelo Brasil, do Rio Grande à Amazônia, registradas em livros publicados na Alemanha e traduzidos no Brasil. Em Santa Catarina testemunhou os primeiros tempos da Colônia Dona Francisca, como bem anotou em seu livro Reise durch Süd Brasilien: “A travessia de São Francisco à colônia alemã de Dona Francisca é lindíssima… O cenário da margem é magnífico e mesmo grandioso. Em volta se ostentam os píncaros ao brilho do sol do meio dia. Em torno de ilhas verdejantes murmuram docemente as límpidas ondas do mar e cada vez mais perto assomam as serras.” Mais tarde: “Esta graciosa cidadezinha composta de casas ajardinadas chama-se Joinville. Com 2500 habitantes, é o ponto central de toda a colônia, a residência da nova pequena Alemanha que se está formando em volta da mata virgem”. Avé-Lallemant morreu em Lübeck aos 72 anos, sendo lembrado lá e aqui, como explorador e importante sanitarista.

Sucedo, pois, a dois grandes historiadores que, com rigor de pesquisa ou como relato de viagem, nos ajudaram, com estilo, a situarmos nossa terra no tempo. Eu tentarei fazer jus à qualidade desse legado.

Sentindo-me já em casa, peço um último momento para reverenciar um grupo de colegas meus, cujo talento eu invejo. São alguns médicos que viraram mais escritores que médicos e que não precisaram do consultório para transformar as pessoas. Fizeram isso pelo encantamento. Assim foi o russo Tchecov, que considerou a medicina sua esposa e a literatura sua amante, assim foi também o médico inglês Connan Doyle, com o seu insuperável Sherlock Holmes, o austríaco Victor Frankl, que extraiu sua mensagem de uma experiência pessoal dramática, o português Lobo Antunes, com cujo irmão tive o prazer de conviver e os nossos queridos conterrâneos Pedro Nava, Dráuzio Varela e Moacir Scliar, todos excepcionais escritores. Quero por fim lembrar, orgulhosamente, um médico-escritor formado em minha faculdade na UFMG e que nos maravilhou, a todos, com seu estilo inovador e suas histórias do sertão da minha terra: o João Guimarães Rosa, aquele que ficou encantado.

Senhoras e Senhores

Sou assim guiado pelas narrativas que assimilei ou construí. Achei que poderia postular uma posição em um grupo dedicado às letras. Afinal, tratava-se da Academia da cidade que eu escolhi. Aquela que me acolheu.

Muito obrigado

 

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