Tante Herda, a solitária
Herr Schimidt morreu sem adivinhar as profundas transformações porque passaria a empresa, que fundara há vinte anos, num gesto de pioneirismo e audácia. Não lhe faltara visão. Tinha – e tivera – aquele sexto sentido dos industriais alemães, porém, mais sentiu do que compreendeu estar o País na transição de essencialmente agrícola para industrial. Transição na qual a sua empresa tomaria parte decisiva, sob a direção do seu filho mais moço, o Dr. Hans.
Fora ele educado em um grande centro de estudos e progresso econômico, perdendo aquela estreita visão provinciana, tanto do seu irmão mais velho, como dos outros diretores. Ademais, a sua maneira refinada de proceder, o seu cabotinismo e um certo jeito de dar ordens como se estivesse a pedir favores, deram-lhe os trunfos para eleger-se diretor-presidente da empresa.
Teve início, aí, a ascensão da firma, antes uma simples fundição de conexões. Disputando o mercado de autopeças, desenvolvendo-se com a criação, das primeiras indústrias automobilísticas do País, obteve enormes encomendas. Depois de asseguradas as encomendas, à cata de capitais, para ereção de novos edifícios e a aquisição de modernas máquinas, assim como para a contratação de operários especializados. A escala de negócios acusou uma subida jamais imaginada ou sonhada pelos demais diretores e velhos funcionários da empresa. Hoje, convenientemente, apelidados de “colaboradores”.
O faturamento acusava índices em um mês, superiores aos de um ano, antes do Dr. Hans assumir o controle e estabelecer as diretrizes da fundição.
Seu sonho, de resto, não era fazer com que a firma permanecesse naquele estágio, tinha outros propósitos. E os confessara a um amigo íntimo. Pretendia criar uma fundação, com fábricas, escolas, cooperativas, universidade, hospitais, clubes recreativos, esportivos e culturais.
Todavia, para lograr tal objetivo, não era suficiente a sua visão e o apoio dos demais sócios, pois existiam fatores extrínsecos, objetivos e agindo independentemente da sua vontade, com força bastante, se não para fazer fracassar os seus planos, ao menos para obstar a sua imediata realização.
Entre eles: HERTA.
Não se sabe como ela entrou na sua vida. Se pela água ou pelos alimentos, mas sua existência era uma realidade.
Quando teve as suas primeiras diarreias, temeu estar com um câncer nos intestinos. A conselho de um médico, foi para uma clínica especializada e realizou, lá, todos os exames, sendo constatada, para seu alívio, a princípio, não a insidiosa moléstia, mas sinais indiscutíveis de solitária. Todos os sintomas, que tanto assustaram, eram causados pelo parasita. Aquele emagrecimento e aquela fome constante, apesar de comer muito bem; aquele cansaço permanente, apesar de dormir cedo; aquelas diarreias frequentes, apesar do cuidado da comida, tudo era provocado pela tênia.
Passado o susto, o Dr. Mascarenhas, responsável pela consultoria da empresa, entendeu ser indispensável batizar a bicha, dando-lhe direitos religiosos e civis. E, por votação unânime da diretoria, a solitária recebeu o nome de Tante Herta.
Dr. Mascarenhas, que não entendia muito de Direito, tinha granjeado a simpatia de todos e obtido o cargo de consultor jurídico com polpudos salários, graças a sua verve, a esta capacidade de fazer brincadeiras, bem ao gosto germânico dos sócios diretores. Por isso, todas as manhãs, quando passava pelo gabinete do diretor presidente, enfiava a cabeça e perguntava:
– Como vai a Tante Herta, Dr. Hans?
Em pouco tempo, toda a fábrica tomara conhecimento de Tante Herta e não faltou quem comentasse entre os operários:
Não bastavam os que já existiam, ainda arranjaram mais um para sugar o nosso sangue…
Porém aquela comédia nada mais era do que uma tragédia racionalizada, eis que o diretor-presidente não conseguia acabar com a solitária, por mais médicos e remédios utilizados. A fome aumentava, o cansaço crescia, o peso diminuía. Os nervos viviam à flor da pele.
Vieram então, diante do fracasso da ciência, os conselhos da medicina caseira e alternativa. O diretor-presidente, desesperado com aquela situação, estava aceitando palpites, conselhos, receitas, o diabo que fosse, para se livrar daquela bicha, que lhe consumia a saúde, não o deixava trabalhar e, principalmente, lhe atrapalhava os negócios. Numa reunião da diretoria, o chefe das relações públicas propôs, para a Ordem do Dia, como item primeiro, um meio de combater o parasita.
– Doutor Hans, disse ele, se o senhor permite uma sugestão, eu tomaria a liberdade de indicar-lhe um remédio eficaz para exterminar solitária.
– Diga qual é – pediu o diretor-presidente.
O chefe das relações públicas, encorajado, explicou o remédio, que não era bem um remédio, mas um processo para se livrar de Tante Herta e consistia no seguinte:
– O senhor de manhã, em jejum, enche uma bacia de leite fervendo e fica em posição de maneira a receber o vapor – o senhor compreende? – e fez um gesto, meio encabulado, para esclarecer melhor.
– Vamos, vamos, estou entendendo…
– Uns quinze ou vinte minutos …
– Nu?
– Sim, doutor, nu. Para o vapor entrar bem e Tante Herta ter aguçado o apetite. Gulosa, ela virá para fora à procura do leite. É bom, também, botar um pouco de açúcar, canela e uns cravos da índia por causa do cheiro… Tante Herta vai saindo e, quando estiver um pedaço para fora, o senhor dá um puxão e pronto!
– Será que este negócio vai dar certo ?
– É tiro e queda, doutor. Remédio muito antigo. A minha avô usava sempre com êxito e curou muita gente – esclareceu o public relations, envolvendo a avó para dar mais autenticidade ao processo de cura.
– Muito bem, amanhã vou fazer a experiência. Agora, vamos ver o que temos para discutir, meus caros colaboradores…
E iniciaram a leitura da ata da sessão anterior, passando a tratar de assuntos da empresa.
No dia seguinte, Ubirajara, o public relations, esperou ansioso o resultado do seu processo de cura. (Cura, não. Pesca à solitária. Sim, isto mesmo. Boa piada! Precisava não esquecê-la para a repetir, quando o diretor presidente chegasse):
– Pescou a Tante Herta, doutor?
E, se o remédio não falhasse, receberia um abração daqueles largos e que o Dr. Hans costumava dar, quando alcançava alguma vitória e, quem sabe?, um aumentozinho, pois ele, sem dúvida, era generoso. A manhã inteira se passou, sem o diretor-presidente aparecer. Aí pelas dez horas, telefonaram da sua casa, avisando que ele só chegaria à fábrica, no período da tarde.
Ubirajara tranquilizou-se com a esperança de que o diretor presidente estivesse pondo em prática o método para pescar solitária (boa piada, boa piada, repetia para si mesmo o public relations ).
Num rápido encontro que teve com um engenheiro alemão, responsável pela zincagem, este lhe perguntou, aludindo ao método:
– Serraá que tá zerto?
– É tiro e queda, doutor Otto. Minha avó nunca perdeu uma solitária com este processo. Foi-se para o setor das relações públicas, depois de ter dado uns tapinhas no ombro do engenheiro, como a tranquilizá-lo.
O diretor-presidente chegou às catorze horas, indo diretamente para o seu escritório.
Ubirajara, que sempre se julgara o máximo em public relations, havendo, por estas credenciais, sido admitido na empresa, imediatamente foi lá cumprimentá-lo e perguntar-lhe sobre o tratamento.
O Dr. Hans estava na janela, olhando para a rua.
– Dá licença. Boa tarde, doutor. Pescou a Herta?
Sem virar a cabeça, sem apertar a mão, que lhe fora estendida, sem entender a piada, perguntou-lhe:
– Você disse que este negócio de pegar a bicha era infalível, não foi?
Ubirajara temeu, por um instante, ter havido revés no infalível método de sua avó. Porém, nada disso ocorrera. Um senão impedira, talvez, o êxito.
E o patrão explicou-lhe o ocorrido.
– Bem, como não tinha uma bacia, comprei uma banheirinha de plástico. Enchi-a com cinco litros de leite fervendo, tirei o pijama e procurei uma posição de maneira que os vapores entrassem e subissem até a Herta. Botei, conforme você recomendou, um pouco de açúcar e cravo da índia. Assim, fiquei meio acocorado, com a banheirinha entre as pernas, lendo jornal, e esperando a bicha pôr a cabeça de fora. Não sei como, perdi o equilíbrio e caí sentado dentro, pelando-me todo naquela quentura. Estou todo enfaixado por aqui e por aqui – mostrou com a mão as partes atingidas. O método pode ser bom, meu caro Ubirajara. Mas é muito perigoso…
Ubirajara, humilhado, gaguejou uma desculpa.
– Doutor, o senhor sabe, eu não fiz por mal…
– Está bem. Sei que você teve boa intenção. Manda o Mascarenhas aqui, para falar comigo, sim?
Assim foi despedido o public relations do gabinete do diretor-presidente, agora mais preocupado do que nunca com Herta.
A história do banho de leite ocorreu a fábrica. Ubirajara, querendo fazer graça, inadvertidamente, a contou numa roda de cafezinho. Ela se espalhou e chegou aos ouvidos do Dr. Hans através da secretária. Logo os seus três mil colaboradores fariam toda a cidade saber daquele acontecimento ridículo. Já chegava de aborrecimentos. Mandou a secretária telefonar para casa e preparar as suas malas. Para se livrar daquela situação horrível, iria à reunião dos chefes de empresa na capital do país. À sua volta, já teriam esquecido tudo.
Discutia a questão do mercado externo, quando sentiu alguma coisa fria, úmida e viscosa na suas próprias roupas íntimas. Pediu licença por um momento e retirou-se para as instalações sanitárias. Tirou as calças e o que era? Um pedaço de Herta. Deu um puxão naquilo que tanto poderia ser a cabeça, como o rabo da solitária. A violência do puxão partiu-a. Ficou com um pedaço na mão, enquanto o resto se encolhia e voltava vagarosamente ao interior dos seus intestinos. Embrulhou o pedaço de papel higiênico, lavou as mãos e abandonou a conferência, na secreta esperança de que aquilo fosse a cabeça. O laboratório o desiludiu, entretanto. O exame demonstrara serem, somente alguns anéis do parasita.
À noite, no bar do hotel, como lhe perguntassem os motivos pelos quais abandonara a reunião, narrou os fatos. Um dos industriais perguntou-lhe :
– Já experimentou alho em jejum? Santo remédio. A bicha não suporta o cheiro e sai logo.
Houve vozes de aprovação e se contaram até alguns casos de cura.
O diretor-presidente não suportava alho. Resolveu, no entanto, aproveitar a recomendação, na manhã seguinte.
Engoliu um dentinho. E logo vomitou. Esperou e, esforçando-se extraordinariamente, engoliu sem mastigar uma cabeça inteirinha, dente por dente. Deitou à espera do efeito. Foi nenhum. Uma ligeira febre de quase quarenta graus, que o obrigou a chamar um médico às pressas, receando passar-se ali mesmo, sozinho, no luxuoso apartamento.
Restabelecido, voltou à reunião, sendo crivado de perguntas a respeito do remédio. Pô-los a par de tudo, constrangido por ter de lhes contar que o médico lhe aplicara um clister, a fim de o livrar do alho.
O último remédio de que lançou mão foi banha de porco.
Um dos mais antigos funcionários da firma procurou-o para lhe recomendar o uso de banha. Não se tratava de um remédio infalível. Mas já dera alguns bons resultados em casos semelhantes. Tratando-se de um colaborador tão antigo e pela razão de não haver ele – ao contrário dos demais – garantindo a eficácia absoluta do remédio, o Dr. Hans dispôs-se a uma última tentativa. O resultado foi inesperado. Durante 15 dias teve de guardar leito, acometido de uma disenteria incontrolável, que o emagreceu mais de dez quilos.
Frustradas todas as possibilidades de expulsar a Herta dos seus intestinos, jurou não tomar mais qualquer remédio, e sim procurar uma maneira de viver em paz com ela.
Durante dois anos condicionou a sua existência à Herta, criando um modus vivendi. Por causa dela, nada obstante ser a sua a maior empresa da região, recusou gentilmente, o convite para ser o presidente da associação industrial, evitou banquetes, festas, honrarias e perdeu grandes negócios. Procedia deste modo para evitar as desagradáveis surpresas que Herta lhe proporcionava, soltando, sem qualquer aviso, os seus anéis, o que fizera passar vexames terríveis, em ocasiões as mais inoportunas. Razão, de resto, que o levou a usar calcinhas plásticas, com elástico nas pernas, iguais às de bebês, em lugar das cuecas tradicionais, de pouca serventia para o seu caso.
Estas providências tomou, depois de péssimos momentos, causados pela inconveniente Herta, que não escolhia oportunidade para fazer das suas. Como, por exemplo, na noite de núpcias, quando, inopinadamente, soltou anéis, obrigando os nubentes a trocarem toda a roupa de cama e a tomarem banho em plena madrugada. Ou, como no jantar de gala, oferecido a um destacado militar, em que o diretor presidente, em meio ao discurso de saudação, sentiu escorrer-lhe pela perna um líquido frio e viscoso, empapando o smoking e obrigando-o a interromper a oração, pálido e suarento, desconfiado de que os presentes houvessem notado algo.
Até a sua morte, causada por um remédio descoberto por cientistas alemães, Herta foi alvo de todas as atenções. Dr. Hans vivia para ela, quase exclusivamente. E seus restos mortais, medindo já cinco metros e sessenta centímetros, depois de expelidos pelo diretor-presidente, foram conservados em formol num frasco de cristal e postos numa estante, especialmente construída para tal fim, no seu escritório, como se fossem os de um ente familiar muito querido, ou um troféu cobiçado durante muito tempo.