Trem de ferro – crônica (Milton)

TREM DE FERRO

MILTON MACIEL

 

Voei de New York para Washington, DC. Depois, findo o congresso literário, resolvi conhecer os trens de passageiros norteamericanos, voltar para a Big Apple com a Amtrak. Embarquei na Union Station e perguntei a um funcionário da ferrovia a que hora chegaríamos na Penn Station. “Five-ou-one”, foi sua resposta muito séria. Lembro que ri com desprezo e comentei com meu colega brasileiro que era muita pretensão daquele gringo dizer que o trem chegaria às 17 horas e um minuto. Um minuto, ora bolas! Certamente chegaria lá pelas cinco da tarde, fora o atraso, é claro.

A viagem foi maravilhosa, trem silencioso, sem sacolejos, assento super confortável, comida e bebida a bordo muito boas. 3 horas e 20minutos de duração. Caramba aquilo era uma hora e meia menos do que uma viagem de ônibus. E barata. Se eu soubesse não teria vindo naquele avião de médio porte morfético, no qual uma turbulência de uns 10 minutos fez minha vizinha de assento, uma cigana, vomitar duas vezes no saquinho. Argh!

Quando nos demos conta, o trem parou completamente em Penn Station, New York. Olhei o tempo no celular. Era o mesmo do relogião da estação: 5:01 PM. Caramba: five-ou-one! O gringo estava certo, o trem estava certo, engoli o meu deboche. Pegamos nossas grandes malas e fomos para a calçada em frente, esperar meu amigo americano, que vinha nos pegar de automóvel.

Descobrimos que o trem estava certo, mas nós estávamos errados: quando ele chegou e nos viu na calçada, cada um sentado em sua grande mala, correu com cara de susto e nos fez entrar rápidos no carro: “Vocês são loucos, esperando com essas malas aqui fora, não consigo entender por que vocês não foram assaltados!”

É, amigo, o trem era demais, nada a ver com os escassos e precários trens de passageiros do Brasil. Mas, em compensação, a região da estação… bem, depois do susto, afinal a região de Penn não era muito diferente de algumas estações boca-quente do Rio ou São Paulo. Estávamos em casa!

Mas a experiência das 3 horas e 20 na Amtrak me marcou para sempre. Me fez pensar na estupidez que foi o desmonte da malha ferroviária para passageiros no Brasil. Afinal eu estava ali, no coração da nação mais carrocêntrica do mundo – e ali o trem sobrevivia e prosperava. Enfrentava o ônibus e o avião. Lembrei-me dos trens ainda melhores na Europa, dos legítimos ‘cruzeiros’ de Eurotrem.

Desde então tenho estudado o problema brasileiro de transporte ferroviário, acompanhado a mistura de incúria e corrupção que minaram o modal ferroviário em benefício do caminhão e do ônibus. Tal qual John D. Rockfeller fez nos EUA, forçando o fim dos bondes elétricos e de boa parte do transporte ferroviário, forçando a proibição do uso de álcool nos motores dos automóveis, coisa comum então, tudo para que o país se tornasse o paraíso do consumo de gasolina e petróleo, o ramo de negócios do velho John (leia-se Standard Oil; ou Esso). Em 1934, porque sua esposa detestava o cheiro de gasolina, o carro pessoal de Henry Ford tinha motor a… álcool!

No Brasil o trem de ferro começou sua história no ano de 1854, quando o pioneiro Barão de Mauá inaugurou os 14 quilômetros de sua Estrada de Ferro Mauá, em Magé, Rio de Janeiro. A malha ferroviária brasileira cresceu e espalhou-se abundantemente pelo país, até entrar em eclipse em meados do século 20, quando passou a ser impiedosamente desmontada no modal de passageiros. Sobrou apenas para cargas, mas sem investimentos ou planejamento, forçada a minguar para não poder competir com o caminhão e o ônibus. Tornamo-nos, cada vez mais, estultos queimadores de petróleo. Dependentes totais do transporte rodoviário. Alguma dúvida? Que tal uma nova greve geral dos caminhoneiros como a de 2018?

Sou velho o suficiente para ter tido o prazer, hoje privilégio, de viajar inúmeras vezes de trem quando criança. Kleiton e Kledir também tiveram. Todos nós viajamos de Maria Fumaça, de RFFSA – Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima. Tenho as melhores lembranças dela. Tanto que escrevi um longo conto de 36 páginas, “Os dois guris”, que está no meu livro bilíngue “Do Sul al Sur”, contando uma dessas viagens épicas de Maria Fumaça pela campanha gaúcha. E que está aqui: https://miltonmaciel.blogspot.com/2013/07/os-dois-guris_5154.html

A Amtrak me fez nostálgico da RFFSA. E me faz hoje lamentar não poder pegar um trem de qualidade para fazer os 400 Km entre São Paulo e Rio de Janeiro em um tempo razoável. A mesma distância que existe entre Washington e New York (360 km), 3 horas e 20 minutos. Japonês ou chinês faz isso em uma hora apenas. Andaram nos acenando com um trem bala também.

Mas ele nunca saiu do papel. E dificilmente sairá, enquanto houver lobby das empresas aéreas e rodoviárias, junto com as de petróleo, para impedi-lo. Vamos continuar queimando estupidamente uma das matérias-primas mais fantásticas para a industrialização no mundo – o petróleo. Queimando, poluindo e aquecendo o planeta. Santa imbecilidade!

Só completos imbecis são capazes de destruir dessa maneira predadora e irresponsável um recurso não renovável tão precioso. Somos todos imbecis, forçam-nos a isso de tal maneira que são muito escassos os que têm noção desse descalabro.

E antes que justa irritação pinte de rubro estas palavras, declaro-me nostálgico da Maria Fumaça e seus apitos melodiosos, de seus belos vagões de primeira e de segunda classe, de seu maravilhoso carro-restaurante. Vou escrever um poema para ela. E um novo conto também.

Enquanto isso não acontece, que fale por mim Zélia Gattai, em “Anarquistas graças a Deus”:

“Mamãe só viajava de 2ª classe. Nesse caso não era por economia e sim por ser ‘muito mais divertido…’. Nos vagões de segunda, era permitido o transporte de volumes grandes e de animais. Viviam sempre apinhados de gente, de bichos e de mercadorias. Todo mundo se atropelava, ao entrar no trem, na ânsia de conseguir sentar — havia o costume de marcar lugar pela janela antes de subir ao vagão —, tropeçando em jacás de frutas e de verduras, em trouxas de roupas, em bujões de leite, em cestas de ovos e em gente mesmo.”

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