Um canivete da roça (Joel)
Um canivete da roça
Seu Ataíde era paparicado por três gerações de mulheres: a esposa, a filha e a sogra. Talvez por isso gostasse tanto de contar. Morava conosco no sítio, lá nas barras do Mamborê, numa casa que ele mesmo construiu. Criávamos porcos em um chiqueiro que, visto de longe, mais parecia uma pousada dessas da moda, construídas em madeira num aclive à borda da mata. O seu trabalho era dar uma boa mangueirada d’água naquilo tudo a cada fim de tarde. E também colocar uma medida de ração duas vezes ao dia nos cochos. Os guris menores éramos órfãos recentes de pai e logo assumimos aquelas obrigações com muito gosto, enquanto ele ficava lá, enganchado sobre a cerca contando algum caso, mais inventado que vivido.
Estava sempre impecavelmente vestido. Calça de vinco marcado a ferro de brasa; camisa de manga longa, levemente maior que o braço, punho e gola engomados, três botões abertos na frente, onde transpassava um cordão; chapéu de abas longas, cinto com fivela de prata e uma botina de cano sanfonado que ia a quatro quintos da canela, sempre lustrosa. Seu adereço de maior orgulho era a correntinha que fixava com alfinete na bainha e a outra ponta ia repousar no fundo do bolso esquerdo da calça. Ali, num anelão metálico, pendurava chaves, uma binga em folha que imitava a flandres e a sua relíquia mais estimada: um canivetão de cabo retrátil que bem poderia se passar por uma faca peixeira quando aberto.
Andava sempre como se fosse a um baile ou voltasse de um batizado. Nas lides da roça, jamais punha a mão. Isso ficava com as mulheres. E conosco, os piás, antes de irmos ou depois de voltar da escola. Vez em quando ele nos alcançava no eito, mantendo uma distância segura para que – deusolivre! – uma enxadada descuidada não lhe jogasse um punhado de terra sobre o brilho das botas. Passava para recomendar alguma rotina, mas acabava por arranjar laranjas ou cana, que decascava pra nós só para exibir o canivete. Depois, ficava ali, a retirar com a ponta a terra por debaixo da unha; ou arrancava um bicho-de-pé da sola do dedão. Fazia isso intercalando com as laranjas ou suculentos melões. Tudo com o mesmo canivete do qual eu ainda me servia para apontar o lápis da imaginação.
Joel Gehlen