📖 “A próxima palavra” (Marinaldo)

A próxima palavra

Rodolfo rodava horas a fio fazendo círculos na sala, a boca cheia de impressões digitais. Rodolfo, apaixonado pela palavra, tinha dislexia. Passava horas revisando o esquecido, e comprimindo a mão, saía do seu refluxo pensamentário alegorias como: Sendo eu nefelibata, porque sugiro uma palavra desconexa?

Naquele dia pensou num pseudônimo. Adotou HPW. Pensou nos teóricos futuros e nos fazedores de dissertações, mordidos de suposições, argumentando o significado de tais letras, o porquê da adoção daquele nome. Ele sempre ria das conclusões aonde muitos chegavam. Um dia ele escreveu “Um monstro no meu armário desliza pela fechadura”. Escreveu por escrever, disse em seguida, após três novos escritores discutirem supostamente que na realidade ele falava era de sexo!

HPW devorava dicionários. Saía pouco de casa, confrontava a mãe com seu perfume, o pai com seu remédio, só queria ser feliz, mas pra isso precisava de um banco. Não tinha. Tinha um tecido fino para cobrir-se. Uma lima para imolar-se. Uma linha para concluir-se. Por isso sempre escrevia mais. E nunca escrevia direito!

Tinha paixão por tercetos, achava as coisas antigas as mais inteligentes; seu avô concordava. Concordaria até mesmo depois de morto. Eis um velho que concordava com tudo. Menos com concordatas. Ele não sabia escrever.

Já havia escrito que dormir em cercas de arame era filosofia, que dentro dos lençóis d’água saíam hipocondrias, que a pequena Ísis era um olho a correr sobre as palavras jogadas fora. Ninguém gostava do que escrevia e a própria tia dizia que rima mais besta era aquela.

Apaixonara-se pela rima quando escreveu a segunda carta. A primeira foi devolvida, pensou que era o destino, era só mudança de endereço. Escreveu para Paulina a seguinte história: “Paulina, melhor que te amar seria que você me amasse/ eu deixaria que você me apedrejasse, afinal, não sou eu que vivo falando que vejo na pedra uma flor?” Ela não deu muita atenção à carta, pelo menos até receber a trigésima segunda – e conclusiva – onde ele dizia que nunca mais escreveria a ela: foi quando disso gostou.

HPW tinha uma vida feliz, gostava de não se sentir triste, que não queria produzir a infelicidade, ela lhe dava enxaqueca. Recebia 30% a mais do que precisava, descansava em listras, tinha uma casa na árvore, vivia no Mundo da Lua, sonhava todos os dias; às vezes se assustava quando sonhava com água; HPW tinha hidrofobia.

Mundo da Lua era um bar cheio de estrelas, estrias, asteróides, esteróides, acrobatas, nigromantes e noctâmbulos. Vendia para marcar no caderninho, servia limão com menta, cachaça com pimenta, cebola com mortadela, vermute com primazia. Abria às seis e às seis fechava. Sempre tinha alguém lá dentro. Dentro de alguém sempre tem um monte, resmungava ele, que freqüentava lá todos os dias.

Tinha quem o esperasse. Paulina estava na estatística. Mostrava Rodolfo para as amigas, sendo a única que ainda lembrava de seu nome. HPW, ele corrigia! Ela não lhe dirigia a palavra. Só gostava de saber que foi amada com piedade e benção, como convém a quem cresce dentro da igreja, mesmo que nada daquilo estivesse dentro dela.

Ela foi a primeira personagem de HPW. Nela concentrou toda sua força. Fez dela a antagonista e única personagem. Na página trinta e sete, da saga – Cristina Fazedora de Rendas – ele a descreveu assim: “Tarde de maio. Ela chovia. Abafada, cantava sombras e azias. Tinha feições do alecrim, crescia em terra seca, suava letras, carregava palavras nas costas, todas elas azedas de tão doces.”

Ele queria escrever um romance. Havia começado várias vezes. Sua lixeira sabia bem disso. Tinha desperdiçado palavras. Queimado tantas idéias! Ao final, o maravilhamento. A paixão de Raul por Pompéia. A transfiguração de Adão no Vesúvio. Tudo jogado no lixo. Afogado no aquário. Esmagado com as costas, com as mãos, com a ponta dos dedos. Não queria ser apenas poeta, queria espremer a poesia.

Inseguro, girava mais rápido que o tempo. Trazia uma porção de relógios no ventre. Carregava uma multidão de escravos para um açoite de amoras, vermelhos misturados se digladiando, e a gente não vendo. HPW se queixando da falta de sono, da falta de quilos, da falta de nervos, da falta de cigarros para fazer a avalanche. Para montar seu clichê. Às cinco horas da tarde quando começava a escrever seus diários. Quando começava a se preocupar em ler, a procurar alguém para ouvir, qualquer um que lhe desse uma boa notícia vinda num comentário: você HPW? Quem diria!

 

Marinaldo de Silva e Silva

COMPARTILHE: