A lua de ontem (Joel)

A lua de ontem

Acho que foi a lua de ontem. Mas também pode ser que sejam as notícias. Deus do céu, elas não param de chegar! Revoam em bandos que, em vez de se aquietarem no sem-fim dos ecos, se espalham por auto disseminação, e viralizam numa pandemia trágica. A lua é assaz. Marmórea. Indecifrável. Tem o dom de aludir espelhos. Não se pode deitar versos à esfera solitária, compor cantilenas merencórias que os dedos soam à garganta. Quando está suficientemente redonda, é esmagadora em seu mistério, faz a gente perder o chão e o jeito com as palavras. A imaginação se põe na elisão dos termos, os veros credos, as redondilhas agrestes da sentimentalidade, tudo se dissolve. Sua nudez absoluta a nos confundir órbita e óbito. O elixir prescrito não estanca o ferimento esférico, que regala por fora o pus dos dentros. Uma inundação vazando o vazio estancado.

Olhar aquele ponto no infinito reincorpora o animal ferido de espírito. Um Centauro cruza o chão polvilhado da prata que se deposita sobre a superfície das coisas mergulhadas na quietude. E vem aquela sensação roendo dentro da palavra adorno. A ancestralidade aprisionada nos mitos sai a caminhar pelo gramado a suntuosa tentação dos semideuses. Não se pode esquecer os olhos erguidos na beleza, muito menos ter os lábios postos em admirações murmuradas. Pois, há sempre um verme que passeia na lua cheia e a indômita lesma do contentamento engorda uma lagarta enquanto sonha borboletas. Aprecia, mas ponha um cheiro de arruda atrás da orelha para que os presságios não enxameiem o ar.
Quando a lua surgiu no horizonte, tinha um rombo no casco. Lembrei de uma dorna antiga de fazer polvilho. No auge da safra e do frio, cinco cestos de mandioca ralada formando uma substância láctea que se deixava para assentar no terreiro, dentro da bacia de madeira. Eram duas redondezas na espera longa da noite: uma no chão; e a outra, no zênite. A memória pisa descalça sua palidez andarilha, e não se agacha para recolher os clamores divinatórios. De todas as ausências, ficou uma de ontem, que há de cumprir os ritos pelos ciclos concêntricos.

Crônica, Joel Gehlen, em A Notícia, 18 de julho de 2019

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