A terceira barata (Joel)

A terceira barata

Crônica de quinta, Joel Gehlen, AN, 08/10

A primeira barata de primavera chegou, esgrimiu destemida suas antenas para se assenhorar do ambiente e veio na minha direção em marcha batida. O impacto imediato é repulsa! Fustiga-me o dever atávico de eliminá-la, como se fora ela, e não a serpente, a tentar Eva na macieira. Maldita sejas, e tenhas tua cabeça esmagada pelos séculos e séculos! Atiçado, corrigi a postura, os músculos e o ânimo. Ela estaca e se posiciona, antenando perigos ou para fazer contato. Sorrateiro, apanho o chinelo e de um único golpe abato a indesejável das criaturas.

Esmagou de um modo crocante, com o som que se extrai de uma torrada entre os dentes. Suas asas perdem a rutilante simetria, jazem deslocadas para fora do pequeno corpo espatifado. As patas retorcidas e calcadas ao chão sobre a mancha no ladrilho, um suco amarelo esverdeado que denuncia a contundência do golpe. Mas as antenas ainda se movem. Assalta-me um quase desconsolo. As baratas sentem dor, essa eficaz estratégia de sobrevivência. Paira sobre o meu silêncio essa ideia que nos equipara.

Foi um ataque infame. Bastaria ter movido o pé e ela fugiria para as sombras, deixando-me limpo da sua impureza e livre dessa morte dupla, pois se esvai com ela o autoengano da inocência. Sinto-me desprezível e condoo-me ao perceber que, aos poucos, ela se recompõe, recolhe as asas, organiza as pernas, reconstitui os seus sinais. Torço para que recobre as forças e se arraste para o escuro fora da vista. Cubro-a com um naco de papel, parece-me que até a luz lhe agride. Com olhos envergonhados, o teclado ao alcance dos dedos, quase consigo retomar o trabalho.

Mas eis que surge uma segunda barata entre os dentes da primavera. Traz o destroço subterrâneo, intenta fugir, mas cresce na minha direção, como se o próprio Deus a mandasse para que me redima. Dois passos, outro golpe e duas baratas agonizam no chão. E, agora, vou dobrar minha contrição? Qual de mim estará sendo honesto, o que se condói ou o carrasco? E levo os dois comigo para o sono? Coexistem em mim e se contraditam? Basta um banho e me limpo? Em qual dos bolsos carrego meu asco? O coice dessa culpa quebra-me a espinha e a densa neblina sufoca a garganta da noite.

 

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