Quarenta anos de velório (David)

QUARENTA ANOS DE VELÓRIO [conto para Finados]

DAVID GONÇALVES

Confesso que saí aterrorizado de uma palestra de um certo professor de filosofia. Ele dissera, em tom seco e abrupto:
— As pessoas, em geral, morrem em torno dos trinta anos e são sepultadas por volta dos setenta.
Nunca tinha recebido um tiro no peito. Mas, naquele dia, o professor fora muito cruel. É que a verdade dói. Eu morri aos trinta anos e ainda não fui sepultado. E não há nada de absurdo nisto. As pessoas — inclusive vários amigos — morrem de fato aos trinta e são sepultadas por volta dos setenta. Alguns são recordistas: chegam quase aos cem anos! O que chateia, entretanto, e me rói como soda, é que levamos quarenta anos para os outros perceberem que estamos mortos… Imaginem: quarenta anos de banalidades, de angústias, de vidinha ruim, à espera da mulher da foice!
Por ter ficado descontente com a declaração do ilustre professor, percorri quilômetros ao seu encalço e lhe disse o estrago que ele tinha feito em minha vida. Ele me retrucou, sem aborrecimentos:
— Pois saiba que viver é muito perigoso.
— Ah, isto eu sei. O Riobaldo, em Grande sertão: veredas, foi quem disse…
— É certo. O Guimarães Rosa, um bruxo filho de uma égua! Viver é muito perigoso. As pessoas, em geral, morrem aos trinta e são sepultadas por volta dos setenta porque têm medo de assumir riscos e fazer inovações. Preferem viver na comodidade, no conforto, em plena segurança.
— Ora, pois quem não deseja um lugar seguro, tranqüilo, sem sobressaltos?
— O único lugar seguro é o túmulo.
— Ai! — gemi, estarrecido. — Que bela esperança você me oferece!
— Morrer é muito mais seguro. A única certeza que o homem tem é que, um dia, irá morrer. E nada acontece a quem está morto. Aos mortos, não há risco algum.
— O que me diz não é verdade. Todos vivem em busca de segurança. Uma boa casa, uma boa chácara, um belo carro, um emprego certo.
— E, quando conseguem, param. Acham que isto basta. Lá dentro do cérebro nasce o medo de perder tudo e portanto nada mais arriscam. Uns se acham muito velhos: outros que já possuem o suficiente. O mais triste é que a maioria deixa de aprender. Ouça bem: o conhecimento, a única moeda que não tem pátria, fica simplesmente jogado às traças. Todo homem que deixa de aprender é velho, está com os pés na cova, não importa se tem vinte ou oitenta anos.
— Viver, então, é um risco…
— É isso! Viver é muito arriscado. Só quem tem meta ou ideal valiosos consegue chegar vivo em seus últimos dias. Se você não sabe para onde ir, qualquer lugar serve. Por isso muitos desistem totalmente; outros, parcialmente, e poucos jamais desistem. Os primeiros procuram justificar sua situação e explicam quão amargos são. Os do segundo grupo se preparam, trabalham e planejam. E conseguem sucesso. Mas depois param. Vivem com medo de perder suas conquistas. Os que jamais desistem, vivem e respiram o sucesso. Suas vidas são estimulantes, compensadoras e dignas. Vivem em permanente risco.
— Ai! — gemi novamente. — Estou apavorado… me diga: é possível ressurgir das cinzas?
— A beleza da vida é que há chances de ressuscitar todos os dias. A gente não vê. Por que um homem tem que morrer aos trinta?
Saí desta conversa com um novo homem dentro de mim.

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