Diário de um encontro (Joel)

Diário de um encontro

Precisava da solidão de quem anda a pé, esse estar só entre as gentes como a saber que na vida ninguém passa de hóspede. Desci o morro com o pesado fardo do almoço e, nas costas, uma mochila com tudo dentro. Fui até a Biblioteca Municipal levar a encomenda para o Marinaldo. Para ir do bairro ao Centro, gastei uma hora entre esperas, caminhadas e conduções. Ali, tantos livros perfilados com suas lombadas austeras e lapidares, deito-lhes olhos sussurrantes para não perturbar sua paz arduamente construída na reverência dos velórios.

O resto da tarde se estende feito um encontro no deserto. Deixo aos pés a tarefa de andar, como naquele breve capítulo de Machado de Assis, enquanto me concentro em percorrer o livro que trago à mão e esgrimir a folha em branco do bloco de anotações. No café, à mesa quase na calçada, tenho os transeuntes todos por companhia, leio e escrevo no afinco de dar corpo a um personagem semitha. Quase de um susto, surge o Apolinário, que vem absorto pela João Colin. E ali, na indistinguível fronteira entre o bar e a rua, falamos de livros, renovando os afetos que nos unem. Tal qual no samba de Paulinho da Viola, ele se retira ao tempo do sinal fechado se abrir. Ficamos a nos dever um nome de autor que deslembramos. Volto a escavar meu personagem e, num instante, ele retorna: “Le Goff, Jaques Le Goff!”

O dia se encaminha para as ribeiras distantes. As nuvens baixas que lhe servem de tampa são mais uma promessa de frio que de chuva. O garçom traz a garrafa sem gelo para servir uma dose de Boonekamp. O líquido amargo e meio doce, escuro e concentrado dorme ao alcance dos dedos, dentro do copo alongado feito a tecla de um piano. O breve circunlóquio com a pianista estará entre as coisas menos perecíveis do mês julho. Mas só a conhecerei à noite, porém, desde o desamparo desse fim tarde, ouço “Gymnopédie” na imaginação, sem sequer fechar os olhos para sorver a melancolia melódica que faz a chuva cair dentro da gente. Gosto de Chopin, mas o que ouço quase ao mudo desespero é Erik Satie. Ambos nascemos em maio, com um intervalo de exatos cem anos e seis dias. Ouvi-lo é regar os ossos no orvalho até que brotem no ar canteiros em prece.

 

Crônica Joel Gehlen, AN, 04/08/2016

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