“A escalada do Batur”, de Salustiano de Souza

A escalada do Batur

Não pode deixar de reparar na senhora que levantou-se com muito custo ao ser chamada. Provavelmente passara dos oitenta, assim como ele. Lembrou-se de suas articulações doloridas ao perceber o esforço que ela fazia para sustentar-se na bengala, embora mantivesse o sorriso que nada denunciava. Tinha singela beleza, daquelas que as agruras do tempo não conseguem apagar. Certamente era bela quando jovem e, percebia-se em seus trejeitos, vaidosa agora.

Eram poucos ali, todos velhos e alquebrados, a seleção era rigorosa e para poucos. Não sabia por que, talvez em razão dos olhos azuis cobalto, talvez pelo dourado dos cabelos, o certo é que ela havia chamado sua atenção. “Como a idade é cruel”, pensou com amargura, apegando-se às lembranças dos bons tempos de aventureiro.

Mas agora o sorriso da atendente o chamava, tirando-o da letargia daqueles pensamentos gostosos. Imitando sem intenção a senhora loira, levantou-se com dificuldade e firmou a bengala no chão, dirigindo-se trôpego ao atendimento.

“Então o senhor foi selecionado”, falou a moça sorridente, como se fosse uma congratulação. Ele apenas assentiu com a cabeça, tentando não demonstrar a ansiedade que de muito o acometia.

“O senhor já sabe como funciona, não? Seu pacote é de três meses…”

“Quando vamos entrar?” a curiosidade se mesclava à ansiedade.

“Daqui a pouco, já vamos iniciar. Só precisa autenticar esse documento”, estendeu-lhe papéis de letrinhas miúdas que ele sequer quis olhar.

“Sem problemas”, falou estendendo o indicador para o scanner, com essa idade não tinha porque questionar contratos.

“Tudo certo”, o atendente olhou o homem de branco que se postara ao lado, o qual com um sorriso bondoso o ajudou a levantar-se. Com passos arrastados passaram pela porta de vidro negro que abriu-se repentinamente. Até então não imaginava que ali havia uma porta.

 

Uma pequena sacudida anunciou a leve turbulência. Abriu os olhos e viu a aeromoça sorridente a lhe oferecer champanhe. Não lembrava quanto tempo havia dormido, sentia-se um pouco estranho, provavelmente em razão da altura, nunca gostara de voar. Então viu suas mãos. Ficou ali parado, admirando-as tão lisas, até que resolveu ir ao banheiro. Levantou-se rápido, teve que aguardar, estavam ocupados. Percebeu as moças e rapazes que foram formando fila atrás dele, coisa incomum para quem viajava na primeira classe. A porta abriu-se e ele entrou rapidamente, fixando os olhos no espelho, contemplando, curioso, seu rosto.

Um rapaz loiro, diria uns vinte e poucos anos, olhos azuis claros e bonito rosto. Deu um sorriso e a alvura dos dentes inundou o pequeno compartimento. Sentia-se feliz, nossa… como se sentia feliz. Voltou ao assento, a aeromoça lhe sorriu e ele aceitou a champanhe, precisava comemorar. Percebeu que os outros também pediam, meio tímido ergueu a taça e ouviu um “saúde” quase sincronizado.

Sentiu uma excitação incomum e levantou-se, muitos estavam conversando animados, como crianças que ganharam brinquedos novos.

“Prazer, sou David”, falou para a moça loira de sorriso aberto.

“Alice”, respondeu com os olhos azuis, balançando levemente os cabelos cacheados.

“Então você escolheu Bali”, a pergunta soou como afirmação, enquanto o sorriso vivaz perscrutava aquele rostinho com sardas. Estavam quase chegando. Os olhares trocados denunciaram que o universo estava conspirando para que fossem felizes, os sorrisos inundavam cada rosto e a alegria estampava-se nas recordações agora compartilhadas.

Tiveram que sentar, o avião iniciava o procedimento de pouso. Fechou os olhos e curtiu aquela sensação gostosa de ser dono do mundo. Como é bom ser jovem, sentir-se poderoso. Já não sentia mais medo de avião.

O aeroporto de Denpasar não era grande, mas bonito. Olhava com atenção os grandes portais terracota que se estendiam ao lado das paredes, como se templos fossem. Seguia a algazarra que caminhava em direção à imigração e depois à esteira das malas. Ainda estava se sentindo estranho, agia como autômato, os pensamentos se mesclavam às recordações, a excitação não o deixava pensar direito, não conseguia desgrudar os olhos de Alice.

“Olá, bienvenidos”, a guia os esperava no saguão, misturando as linguagens num sotaque carregado que fluía de um sorriso receptivo.

Na pequena van já não havia muito barulho, ouviam atentos as explicações: “amanhã será livre, recomendo visitar a floresta dos macacos; na segunda começaremos o curso de idiomas…”. Estavam quase chegando a Ubud, pequena vila no coração da ilha de Bali.

O Villa Lumia era esplendoroso. Um cinco estrelas que conservava todos os traços locais num requinte de primeira grandeza. David olhava com atenção os entalhes de madeira, esculpidos por mãos hábeis, sempre gostara de obras de arte e estava tendo a oportunidade de sentir esse gosto aflorar novamente.

Entrou na pequena piscina tépida que o convidava a fugir do mormaço da noite de breu. Fechou os olhos e deliciou-se nos pensamentos: Sim, o dinheiro podia comprar muitas coisas. E quando se é jovem, essa lista beira o infinito.

A porta abriu-se ligeira ao leve toque do indicador. O homem com roupa branca apertou os olhos por baixo dos óculos grossos, pois a penumbra contrastava com o arsenal de aparelhos de luzes faiscantes, como se cuspissem traços multicoloridos no ar. O homem da mesa levantou a cabeça e sorriu. Seu turno havia acabado.

“Tudo bem por aqui?” Ele apenas sorriu, não havia necessidade de resposta, as câmaras de vidro continuavam enfileiradas entre os aparelhos luzidios, os rostos dos pacientes continuavam inertes, submersos na solução aquosa, com tubos e fios saindo por todos os lados.

Olhou a senhora loira de bengala na câmara 5, lembrou da pergunta que ela fizera: “será que vou acordar mesmo?”. Agora ela estava ali, com os olhos de azul-cobalto abertos, brilhando sob a camada de solução líquida, fitando o nada. Nenhum movimento, apenas o suave farfalhar, quase inaudível, da respiração mecânica. Estaria ela viva?

“Soubeste da tempestade solar?” Ergueu os olhos assentindo, saindo do mar de pensamentos, a tempestade seria de magnitude 5, sempre um problema para a companhia e principalmente para eles, era trabalho dobrado.

Voltou a olhar para a senhora loira, ela, desde que chegara, lhe chamara a atenção. Parecia irradiar um desejo incontido de viver, difícil descrever, coisa que só os olhos diziam. “Porque esse desejo eterno de sermos eternos?” pensou, “porque essa busca insaciável pela fonte da juventude?”.

Fechou os olhos na penumbra, ouvia-se apenas o som gutural das respirações forçadas, o ar sendo impelido inexoravelmente naqueles corpos inertes, bips quase inaudíveis emitidos pelos aparelhos que riscavam o escuro com suas linhas de altos e baixos. Saindo do transe começou a examinar os relatórios de atividade neural dos pacientes. “Devem estar se divertindo.” O colega já havia ido embora.

 

Recolheu o dinheiro que parecia brotar na abertura do caixa eletrônico e o contou, “essas máquinas não erram mais…”, colocou no bolso, “tudo é fácil quando se tem dinheiro”. Subiu na motocicleta e acelerou, esgueirando-se dentre as centenas delas que iam e vinham nas estreitas ruelas de Ubud. Sentia o ar quente da tarde no rosto e a incrível sensação de ser jovem, “um moleque”. Parou na frente do hotel, Alice já o esperava. Deu-lhe um beijo rápido e ela subiu na garupa sorrindo.

“Já busquei o voucher”, falou ele sorridente, “vamos escalar o Vulcão Batur”, ela apenas sorria com o azul dos olhos, “nessa madrugada, precisamos acordar as duas”. Riram o riso despretensioso dos jovens e partiram rumo ao bar.

Na conversa que fluía gostosa entre os turistas mesclavam-se risadas em diferentes idiomas, pois a amizade e o sorriso são linguagens universais. Na mesa deles o bom gosto do vinho era servido com as reminiscências de um tempo que agora parecia longe, lembranças evocadas no tilintar dos talheres. No refinamento de seus modos percebia-se não serem jovens comuns.

Gostavam de conversar com Fernandez e Mirian, insertos como eles, combinavam em tudo, até nos papos de filosofia que viravam a madrugada. “Mas hoje vamos indo, o Batur nos espera.” Os quatro iriam nesse que era um programa imperdível em Bali, escalar o vulcão para assistir o nascer do sol no ponto mais alto da ilha.

Acordaram às duas da madrugada, a van os apanhou às duas e meia. Alegres com as mochilas nas costas, conversavam no escuro. Pararam no sopé do monte para tomar café, por sinal horrível, com banana frita, numa tenda de aspecto sujo. Chegaram na base do vulcão perto das quatro horas da manhã. Não imaginavam que pudesse haver tanta gente naquele lugar.

“Olá, sou Malila, serei sua guia”, falou a moça de rosto arredondado, tez morena e dentes alvos que sobressaíam nos lábios grandes, “trouxe lanternas para vocês. Me aguardem aqui”. Era um guia para cada seis pessoas, todos tomaram suas lanternas e ficaram reunidos na penumbra.

“Que excitante”, falou Alice.

“Pena que vai acabar logo”, o pesar pesava na fala de David.

“E se existir algum modo de driblar o sistema?” perguntou Fernandez.

“Ficar aqui feliz para sempre, tipo conto de fadas?” Não dava para distinguir se era sarcasmo ou tristeza na voz de Mirian.

“Vamos indo pessoal!”, a guia apareceu do nada e iluminou o grupo. Acenderam as lanternas e começaram a caminhar. Precisavam iluminar o caminho, o escuro pintava tudo de negro. Quase automaticamente fizeram fila em duplas, o outro casal postou-se à frente junto com a guia, Mirian e Alice estavam um pouco atrás, David acercou-se de Fernandez:

“E essa história de driblar o sistema?” Não dava para dizer se a excitação era em razão da escalada ou da curiosidade.

“Eu fui engenheiro da companhia”, falou Fernandez baixinho, “ajudei a criar o sistema”.

“Está falando sério?” A noite não permitia ver os olhos arregalados de David.

“Sim, desde a primeira versão.”

“Mas então você sabe como a coisa funciona…”

“Sim, e é simples, só precisa de tecnologia.” Fernandez respirou fundo, começavam a ofegar, já dava para sentir o aclive do terreno.

“Funciona assim: Eles conseguem corpos jovens, de preferência que não sofreram grandes estragos ao morrerem e os mantêm em estoque. Os velhos milionários, como nós, contratam o serviço, eles encontram o corpo ideal, fazem a adaptação do seu biótipo e tcham, tcham, tcham, você fica jovem de novo.”

“Você diz que isso é simples?”, perguntou David encarando o amigo. A penumbra já dera lugar a uma tênue claridade, dava para distinguir as silhuetas. “Mas como fazem eu ser eu mesmo, quer dizer, eu lembrar de tudo o que eu fui…”

“Eles fazem a reconstituição da sua pele e das digitais, implante de olhos, copiam sua memória, ou seja, refazem você num outro corpo. Lembra daquela tarde dos exames médicos?”, David assentiu, “foi quando vasculharam suas memórias procurando imagens para saber como você era aos vinte anos.”

“Mas meu corpo está lá com eles, não?”

“Sim, está em stand by, porque na realidade você está aqui.”

“E porque não posso ficar aqui para sempre?”

“Porque estamos conectados a uma base aqui, que está conectada à base de lá. Você possui três chips implantados”, falou Fernandez, mostrando o punho, a nuca e o quadril.

“Então não tem saída…”, a voz de David soou triste.

“Acho que tem”, falou Fernandez.

“Vamos parar um pouco aqui”, a guia cortou a conversa. Era uma clareira larga, haviam caminhado cerca de uma hora e meia e muitos estavam sentados sobre as mochilas, descansando. “Daqui para frente a subida fica mais difícil, o terreno é mais íngreme”, a guia apontava o monte que quase não aparecia à frente. “Então todo cuidado é pouco.” Tomaram água e sentaram.

Recomeçaram o caminho após cinco minutos. David mal podia esperar.

“Qual saída?”, perguntou baixinho.

“Um vírus de computador.”

“Vírus?”

“Sim, implanta um vírus na base daqui, ela manda informações falsas para a base da origem, entende?” Não, David não estava entendendo nada.

“Como te falei, a base daqui nos monitora pelos chips e transmite as informações para a base da companhia. Eles te acompanham vinte e quatro horas. Depois de três meses, no final do programa te desligam, repassam as memórias de volta para teu corpo velho e te acordam.”

“E o que fazem com esse corpo que tenho agora, o novo?”

“Deixam em stand by esperando um novo cliente. Na realidade não fazem qualquer alteração, é bem provável que você queira voltar. Isso aqui vicia, cara.”

“E o corpo já está prontinho…”

“Sim, eles tem uma mina de ouro, vão arrancar cada centavo seu.”

“Tá, mas não entendi onde entra esse vírus.”

“O vírus substitui as informações que os teus chips enviam para a base, aí você pode fazer o que quiser.”

“Não entendi.”

“Pelo teu contrato você não pode sair de Bali, certo? Você lembra o que acontece se sair?”

“Sim, eles me levam de volta.”

“Eles te desligam, cara, jogam esse teu corpo jovem no depósito e colocam pra funcionar o velho David que está lá na solução aquosa, simples assim.” David aos poucos ia entendendo a mecânica da coisa.

“Mas se na máquina aqui tiver um vírus, um totem seu, que fica informando a base da companhia que você está cumprindo seu contrato direitinho, você pode ir para onde quiser que eles não irão saber.”

“Será?”

“Sim, esse é um programa sigiloso, ninguém lá fora sabe como funciona direito. E eles não querem que ninguém saiba.”

“Sua família acredita que você está fazendo um cruzeiro pela Ásia, não?” Era verdade, havia um contrato de confidencialidade e para todos os efeitos ele estava em viagem de turismo.

“E aí podemos fugir para bem longe, é isso?” David quase caiu ao tentar escalar uma pedra. Foi segurado por Fernandez.

“Mas você acha que eles não vão fazer nada?”

“Eles virão atrás de nós como lobos. Vão nos matar. Esse teu corpo novo aí vale muito dinheiro. Além disso, não vão querer que alguém saiba como funciona o sistema.”

“Então não temos saída…”

“Para tudo há saída. O vírus vai ficar enganando eles até o final do contrato. Só então que eles vão descobrir que foram enganados. Temos que ser mais espertos, nesse meio tempo precisamos fugir, nos transformar em outras pessoas…”

“Cirurgia plástica?”

“Isso, precisamos mudar tudo, digitais, pele… na Tailândia é fácil, depois conseguir outros documentos…”

“Transferir bens e valores sem deixar rastros… Fui banqueiro a vida toda…”  Fizeram silêncio, o caminho estava cada vez pior. Uma dúvida: “E nosso corpo velho, o que vai acontecer?”.

“Vão levar para a família e dizer que tivemos um AVC no Taiti.” Novo silêncio, a cabeça de David trabalhava a mil por hora.

“Mas porque você não fez isso ainda?”

“Por dois motivos: preciso um mínimo de três computadores trabalhando juntos, dois ficam exigindo cem por cento de processamento da central enquanto o outro vai alterar o programa base e inserir o vírus.”

“Você falou em dois motivos?…”

“O outro é pior, as duas bases precisam estar desconectadas.”

“Putz… Tem como desconectar?”

“Em algumas ocasiões eles são obrigados a desligar a base da companhia. Chamam isso de congelar o sistema. Os computadores de lá trabalham em rede neural, muito sensíveis, então qualquer instabilidade pode afetar os corpos inertes, as vezes até matar.”

“E quando eles desligam?”

“Quando tem tempestade solar, por exemplo.” Fernandez ajudou Mirian que não conseguia subir um pequeno barranco.

“Por sinal”, voltou-se para David, “está prevista uma grande tempestade solar para daqui a três dias.”

A claridade do dia já mostrava as rochas nuas, estavam quase no pico do vulcão, havia muita gente ali.

“Chegamos”, agora dava para ver o sorriso largo da guia, “Podemos sentar ali”, apontou um pequeno amontoado de pedras onde havia alguns lugares. David olhou ao redor, havia centenas de pessoas de todas as raças e linguagens.

“Olhem!”, Alice apontou o tênue alaranjado do céu que começava a despontar. Só então David percebeu que já era dia, embora o sol teimasse em manter-se escondido. A guia apareceu com enormes xícaras de chá quente, estava frio ali.

“Tudo bem?” Alice e Mirian perguntaram quase juntas.

“Precisamos conversar”, David olhou para Fernandez.

“Sim, assunto sério.”

Um enorme clarão laranja despontava no leste, um espetáculo multicolorido de sensações. Os quatro, sentados sob a luz que agora os aquecia, assistiam o sol nascendo lentamente, nascendo com a mesma esperança que nascia em seus peitos, esperança que se agarrava à vida, esse sopro misterioso que não nos permite saber seu início e seu fim.

 

 

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