Harmonia-Lyra – A bandeira da União (Walter Guerreiro)

 

A BANDEIRA DA UNIÃO

Walter Guerreiro

 

O espetáculo Gala Lírica que abriu as comemorações do III Natal da Sociedade Harmonia Lyra em 22 de novembro de 2014 empolgou o salão lotado, nas apresentações das árias de óperas famosas, interpretadas por duas sopranos, um barítono e um pianista, mas ao fim, durante os agradecimentos pelo Dr. Álvaro Cauduro, o presidente da entidade trouxe à algo inesperado e de alto valor histórico e patrimonial: descerrou uma bandeira do início da Sociedade, encontrada pela secretária-executiva Sra. Rosita Schubert Andrade enrolada e envolta dentro de
um armário.

Vejamos o que essa peça de arte decorativa pode nos contar, de início ela é apresentada como uma bandeira, que na vexilologia (estudo das bandeiras) significa que simboliza uma nação, estado, município, entidade, agremiação, concebida para ser presa pela sua largura a um mastro. Confunde-se com o estandarte que é um tipo específico, em geral bordado, e que não se presta a ser hasteado, e sim levado como guia em desfile cívico. No nosso caso se trataria de uma “bandeira de olhares” por ser bi face, com desenhos diferentes de cada lado. Executada em algodão e bordada em ponto-corrente, medindo 143 x 210 cm, de um lado seu campo é de cor cru, tendo como carga o emblema da sociedade, a lira em amarelo cercada pelos ramos de louro em verde e com pequenos frutos vermelhos, ladeado pelas datas 1858 e 1899; do outro o campo é verde, com o monograma HLJ ao centro, cercado por botões florais tendo as frases Harmonie-Lyra e Joinville acima e abaixo. No exame dois detalhes chamam a atenção: a bandeira é formada por dois tecidos distintos costurados a mão pelas bordas dobradas embainhadas; nos quatro cantos existem pequenas alças de adriça do mesmo tecido verde. As alças de adriça normalmente são utilizadas para
hastear uma bandeira, sendo duas na sua largura, isso aponta que sua utilização então seria como estandarte de desfile conduzido a quatro mãos.

Ocorre uma incoerência, se a bandeira tivesse sido criada em 1899 como de início foi pensado, a frase no verso é de 1921. Ora, tudo indica ali dois tempos históricos, o primeiro quando nasce a “Musikverein Lyra” em 4 de setembro de 1899 como fusão das sociedades Streichquartett e Musikverein zu Joinville, correspondendo a data 31 de maio de 1858 à fundação da Harmonie-Gesellchaft por um grupo encabeçado por Eduard Trinks, Georg Adolph Otto Niemeyer, Ottokar Döerfell e Jean Bauer. Essa data 1899 corresponde então ao lado da bandeira quando de sua feitura, com o emblema da lira cujo criador desconhecemos, carregado de significados uma vez que é o instrumento musical da harmonia cósmica , e na Maçonaria jóia do Mestre de Harmonia da Loja, além de simbolizar a música universal, e seu autor provavelmente seria maçom. Sobre os ramos de louro que a circundam simboliza a imortalidade e o conhecimento secreto, seus frutos habitualmente não são representados modernamente, embora apareçam no período greco-romano.

Quanto à sua execução temos uma pista, o grupo de Kraenzchen Heiterer Wochenschluss (grupo de bordado e crochê Alegre fim de semana) criado em 16 de junho de 1899, assinalado na literatura por Janine Gomes da Silva e Regina Colin, de cuja relação com nove integrantes três eram casadas com componentes do grupo dos dezenove fundadores do Harmonie Gesellschaft, são elas: Sofie casada com Louis Niemeyer, Martha casada com Emilio Schwochow e Rosa casada com Hugo Delitsch.

O outro lado como disse, tem como carga um monograma, o HLJ em seu centro, rodeado por guirlanda de botões florais e as palavras Harmonie-Lyra – Joinville. Ora, esse nome apenas aparece a partir da fusão das duas sociedades pré-existentes: a Harmonie-Gesellshaft e a Musikverein Lyra oficialmente em 28 de outubro de 1921 e na prática a 2 de janeiro de 1922. É lícito então supor que esse lado da bandeira tenha sido confeccionado em 1922; na ocasião o Presidente era Adolfo Trinks, cuja mulher Eva Trinks, nascida em 22de outubro de 1891, filha de Olavo Guilherme Hygon e Helena Maximiliana Hygon se casara com Adolfo, em 23 de abril de 1910 tendo Louis Niemeyer e Otto Parucker como testemunhas, percebendo-se assim o estreito relacionamento social com seus padrinhos e com as origens da Sociedade. Conforme registros de época no Kolonie-Zeitung (28/10/1924) o casal como Diretores artísticos iria se destacar recebendo elogios pela atuação no Harmonie-Lyra.

Segundo declaração de Helena Remina Richlin, filha de Helena Kölling Richlin, sua mãe relatava por sua vez sobre Emilia Hygon, irmã de Eva Hygon Trinks, a respeito das reuniões na residência de Adolfo e Eva para confeccionar coulisses pintadas ou bordadas. A coulisse é uma peça plana corrediça que integra um cenário, seria como cortina nas laterais de um palco, podendo fazer papel de painel decorativo. Tinham dupla função, esconder o acesso aos bastidores e ser peça que permitia troca de cena ou de cenários.

Diante disso buscamos no extenso acervo iconográfico do Arquivo Histórico de Joinville fotografias de apresentações teatrais, nada encontrando, mas nas pastas das famílias Lepper-Trinks, entre cartões postais, bilhetes familiares, convites e recortes encontramos um cartão medindo 10,5 X 16,5 com desenho em grafite do monograma HLJ. Este foi criado com fonte tipográfica de caixa alta no estilo Art Nouveau, (aliás, o mesmo da frase Harmonie-Lyra e Joinville na bandeira) cercado pelos botões florais ondulados característicos do estilo, podendo ser de lírios, papoulas ou íris. Pelo exposto só podemos concluir que a segunda face da bandeira foi criada e confeccionada por Eva Trinks, restando saber qual sua função, seria uma coulisse ou um estandarte da Sociedade?

O último recurso foi buscar depoimentos de pessoas que tivessem participado ativamente na vida da entidade, e duas foram de grande ajuda, os senhores Adhemar Trinks e Eduardo Miers, ambos atualmente com 86 anos. O primeiro atuou como músico tocando contrabaixo desde 1947 até 1995, fazendo parte da orquestra desde sua reativação em 1951 por ocasião do Centenário de Joinville. Sobrinho e afilhado de Adolfo Trinks recorda seu tio ter-lhe falado de uma bandeira da Sociedade, e conta de um caso que pode elucidar indiretamente o ocorrido. Em 1959 foi Presidente e recebeu do Vice Presidente Carlos Busch um pacote marcado “confidencial” contendo documentos sigilosos e que deveria ser guardado pessoalmente; dez anos depois, considerando o tempo decorrido, resolveu abrir esse pacote que continha desde a compra do terreno da Sociedade, as plantas originais, documentos do Ministério da Guerra com permissões de apresentações e outros. Essa documentação foi analisada por Elly Herkenhoff e doada ao Arquivo Histórico, lembremos que Carlos Busch foi presidente de 1939 a 1942, e que no ano seguinte as apresentações musicais foram suspensas, se acentuando a Campanha da Nacionalização iniciada em 1938. As bandeiras das Sociedades e seus desfiles foram proscritos, embora o caso da Lyra fosse diverso da dos Ginásticos e dos Atiradores, mais identificáveis com um germanismo endêmico, fato é que o temor existia. Ouvindo Eduardo Miers este recorda que uma bandeira da Sociedade era apresentada em certas festividades na época de Otto Pfützenreuter Jr., violinista e depois regente da Orquestra da Lyra em 1937, quando Joseph Pepi Prantl retornou à Europa. Ora, no ano seguinte, em 27 de maio de 1938, houve intervenção militar e quem passa a responder é o Capitão Numa de Oliveira do
13º BC, é então de se supor que Carlos Busch, temeroso por algo que poderia trazer problemas a tenha escondido como no caso dos documentos, permanecendo depois no esquecimento.

Com isso acredito ficar esclarecido nesta investigação tratar-se de uma peça de memorabilia, literalmente significando desde Sócrates aquilo que se retém na memória, não é uma coulisse e por isso não aparece em qualquer registro de cenas de no teatro na Sociedade, é um estandarte com característica de “bandeira de olhares” cristalizando materialmente a união da Musikverein Lyra com a Harmonie e bordada em dois tempos históricos: 1899 e 1921 ambos entrelaçados por grupos e laços sociais reconhecidos na história da cidade, sua função apresentar a identidade da Sociedade Harmonia Lyra em solenidades.

Oculta em época de conflitos ressurge hoje intacta, pois tudo flui tudo e muda no rio do tempo, mas os valores verdadeiros permanecem.

 

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