📓”Os brasileiros falam errado?” (Hilton)

OS BRASILEIROS FALAM ERRADO?

Mudanças históricas na língua falada

Hilton Gorresen

 

A Língua é uma ferramenta que todos nós usamos, por isso é importante saber mais sobre ela, inclusive para combater ideias e preconceitos do lugar-comum sobre ela.

Se atentarmos a uma conversa comum de brasileiros, vamos ouvir coisas como “butina, cumida, bixiga,  ou animau, legau, ou sorveti, saboneti, cavalu, poca, oro, caxa, bejo, quejo”, etc,

Será que estamos falando errado?

Será que alguém ainda fala ANIMALL, como antigamente? E leite quentE?

A língua não é um produto pronto, como o latim, mas sim um processo. Por uma série de motivos, históricos, sociais, geográficos, alguns dos quais vamos apresentar aqui, a língua falada vai mudando, evolui, mesmo que alguns achem que é para pior. De acordo com os linguistas, não existe língua pior ou melhor, é tudo questão de comunicar.

A língua escrita registra as mudanças muito lentamente. Vai atrás das modificações  como numa corrida entre a lebre e a tartaruga.  E não se pode viver fazendo reformas a cada mudança verificada.

A verdadeira língua é a falada, a escrita é uma tentativa de representá-la. Os estudos sempre se concentraram nessa (gramática, estudos dos clássicos), o que criou o mito de que devemos falar como está escrito. Por isso muitos se escandalizam com as mudanças. Mas vá na França falar “couvert”, “bateau”, “maillot”, você não será entendido.

Hoje em dia já existem estudos sobre a linguagem falada. O professor Ataliba de Castilho publicou algumas obras sobre a língua brasileira falada. O pesquisador catarinense Izaque de Borba Correia, no seu Dicionário Catarinense, comenta:

O falar francisquense, de provável origem vicentina, é uma das mais importantes manifestações do português falado no Estado, diferente mesmo das outras localidades litorâneas.

Suas características de ritmo e sotaque influenciaram praticamente todo o norte catarinense. Por isso, o francisquense não estranha quando se dirige a lugares como Barra Velha, Guaramirim, Corupá, Jaraguá do Sul, e especialmente Joinville.

 

A mudança externa em nossa língua verificou-se com as modificações do português de Portugal para o Brasil, tendo como causas o distanciamento geográfico e temporal, a  miscigenação e a imigração.

A língua falada, como quase tudo, busca se acomodar (foneticamente). Assim como os homens, busca a maneira mais fácil de realizar as coisas. Emitir sons às vezes exige um esforço extra de articulação, uma ginástica na boca. Às vezes, o ponto de articulação de um som não se harmoniza com o de outro som.

Para verificar isso, sugiro que ARTICULEM de dois modos a palavras “também”:

TAM-BÉM

TAN-BÉM

Dá de perceber que do primeiro modo é mais fácil. Isso porque os fonemas (sons) M e B são bilabiais, portanto têm o mesmo ponto de articulação, entre os lábios. Um fonema já prepara a articulação do outro, o que não acontece do segundo modo, visto que o som N é dental, articulado com a língua detrás dos dentes..

Por essa razão, acertadamente, a grafa-se M anteriormente a B e P. Algumas vezes, por se formarem na mesma origem, o som de M assimila o B e o P: Tamém.

Há palavras que vão se desgastando, deixam de ser usadas pelas novas gerações, outras perdem ou alteram seus referentes.

Palavras dificilmente, ou não  usadas na fala:

  1. Outrossim, algures, alhures, ínterim, balzaquiana, céu enferruscado
  2. Datilógrafo, anágua, folhinha (de calendário), chapeleira – SEM MAIS REFERENTES
  3. Ao pé (ao lado), asinha (depressa), lobrigar (ver ao longe), patuscada (balada, farra), estroina (irresponsável), chalaça (pilhéria) – ULTRAPASSADAS

 

Palavras que alteraram o sentido:

Guilhotina (hoje aparelho para cortar papel), camiseta (atual regata), cueca (atual samba-canção), pentelho (refere-se atualmente a menino impertinente).

Quando as mudanças estão sendo processadas, ainda podem ser percebidas e alguns mais tradicionalistas se incomodam com isso. Dizem que o pessoal não fala o português correto, que a melhor pronúncia é a de Portugal, etc.  Mas não existe língua em que não haja essa diferença fala/escrita.

Vejam o exemplo das línguas inglesa e francesa. Não fazem uma reforma ortográfica há séculos. Por isso, hoje fala-se completamente diferente da escrita. O francês escreve “couvert” e fala /cuvér/. Escreve maillot e fala /maiô/. Se eu for à França e falar MAILOT serei ridicularizado por eles.

Quanto a essa perda do ll (nosso lh) há um fato interessante: após a revolução francesa, o poder passou dos aristocratas aos burgueses, uma mudança nas relações políticas.  Vocês sabem que uma língua nacional é o dialeto da classe dominante. Uma língua é um dialeto que tem exército, marinha e aeronáutica. Como a burguesia e o povão não utilizavam essa pronúncia (lhe), com o tempo a nova pronúncia estabilizou-se na língua. Quem teria coragem de utilizar a pronúncia dos aristocratas naquele contexto? *

É como se no Brasil houvesse uma revolução que colocasse no poder a classe baixa, que fala paiaço, muié,, arvre, nois semo, etc.

Na Inglaterra, com a conquista pelos normandos em 1066, entraram muitas palavras de origem latina e houve algumas modificações na ortografia. O que se escrevia com CW, passou-se a escrever com QU. Acho que depois disso não houve mais mudanças na ortografia. **

No Brasil, na época colonial, foi criada, entre os brasileiros,  uma linguagem que facilitava a comunicação com os índios: uma evolução  do tupi-guarani, denominada “Língua Geral”. Muitos brasileiros só conheciam essa linguagem, origem da denominação de muitas de nossas localidades. Para evitar que tal língua se disseminasse e “engolisse” o Português, o Marquês de Pombal, todo poderoso do Reino, proibiu que se utilizasse tal idioma nos assuntos públicos, em escolas, órgãos públicos, tribunais, concursos, petições, etc.

*/** Fonte: A Língua de Eulália, de Marcos Bagno

As mudanças na Língua são refreadas por algumas instituições, que buscam preservar a unidade linguística do país: Escola, Tradição literária, Gramáticos e dicionaristas, Academias de Línguas e Instituições oficiais.

Outra coisa que é bom saber: Ortografia não faz parte da língua. De acordo com o linguista Marcos Bagno, ¾ das línguas do mundo não têm escrita, portanto não tem ortografia. Ortografia é criada por decreto do governo. Mas governo nenhum pode modificar os fenômenos que se verificam na língua falada. Pode-se determinar que se passe a escrever mesa como meza, mas não se pode mudar a palavra para “mensa” ou “meisa”.

Obs.: neste caso, não confundir Ortografia (modo de grafar) com escrita (tentativa de representar os sons), relação som/letra. Escrever “dansa” não é erro de língua, e sim ortográfico.

Para se ter uma ideia da “confusão” ortográfica, vejam quantas realizações tem o som S:

S seda, valsa  SS massa

Ç maçã  C cedo

SC descer  SÇ desça

X trouxe  XC exceção

 

Evolução do Português

O português, derivado do latim vulgar, se desenvolveu em diversos períodos. No período arcaico, não havia regras fixas, palavras podiam ser escritas de formas diferentes. Procurava-se a relação fonética som/escrita. Há palavras que eram escritas de cinco diferentes formas.

Com o Renascimento, no século XVI, houve um retorno aos autores clássicos greco-romanos, o chamado Classicismo. Achava-se que se deviam conservar nas palavras a etimologia original. Criaram a ortográfica de base etimológica. Foi aí que foram introduzidas no léxico algumas formas latinizadas, com sinais gráficos desnecessários. Não faz muito tempo, no início do século 20, ainda se escreviam coisas como pharmacia, sciencia, etc. Foi em 1943 que isso mudou, com a reforma ortográfica realizada em Portugal, mais tarde imitada no Brasil.

Atualmente, a base de nossa escrita é fonético-etimológica.

Primeiras gramáticas

– Fernão de Oliveira (1536)

– João de Barros (1540)

Com a obra de Camões, em 1572,  houve uma certa organização do léxico.

– Jerônimo Soares Barbosa (1782) – lembrado como autor da regra de flexão do infinitivo (sua gramática é baseada na Gramática de Port Royal,  uma gramática filosófica publicada na França).

Hoje existe o conceito de “português brasileiro”. Natural, pois o desenvolvimento de nossa Língua processou-se de modo diferente de Portugal, por motivos históricos, geográficos e sociais. Os escritores do movimento modernista de 1922 romperam com a norma daquele país, ainda seguida pelos parnasianos. Quebrou-se a regra do “conte-me, diga-me” fá-lo-ei, dir-me-ia e outros. Nossa língua tornou-se mais coloquial.

Alguns Fenômenos linguísticos* explicam as modificações verificadas na língua falada (conforme  relação no segundo parágrafo inicial):

No caso de “cumida” e “bixiga”, “curuja”, “sigundo”, há uma harmonização vocálica. Isso acontece quando as vogais tônicas  são I e U. As tônicas “puxam” as pretônicas E/ O para seu patamar.  No caso, isso provoca uma harmonização nos sons da palavra.

Diferente é o caso de mulambo, muqueca, buteco, burrasca e outros. São palavras iniciadas por B e M, bilabiais, como já vimos. Como O é uma vogal “redonda”, o exercício bucal é mais difícil (comprimir os lábios e arredondá-los em seguida), daí a preferência pelo U.

No caso de “sorveti” e “cavalu”, quando as vogais postônicas são E e O, essas sofrem uma redução, pois são pronunciadas de forma mais fraca, soando como I e U átonos.

Há também uma outra versão. Em alguns casos, não vou generalizar pois não sou especialista, E/O finais estariam representando I/U átonos, que não temos como representar no número de vogais. Claro, se passarmos a escrever sorveti, o I final será tônico, e necessário colocar circunflexo no VE. Isso seria uma alteração mais difícil.

No caso das palavras “poco, oro, loco”, etc., os sons O e U são foneticamente próximos, o que provoca a assimilação desse último.. Para comparar, vejamos a língua castelhana: no espanhol, pronuncia-se e escreve-se loco, poco.

Ainda são faladas as formas “pexe, caxa, quejo, chero, dinhero”.  Nesses últimos casos, em decorrência dos pontos de articulação dos sons, a assimilação só se realiza com as consoantes J, X e R. (Ao contrário do primeiro caso, agora a assimilação se dá entre a semivogal (I e U) com a consoante que lhe segue).

No caso do L em final de sílaba, há uma vocalização, isto é, a transformação na vogal U, fato verificado a partir do começo do século 20, aos poucos adotados na língua culta.

*Fonte: A língua de Eulália (Marcos Bagno)

 

CARACTERÍSTICAS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO

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1.TOPICALIZAÇÃO  (modelo Tópico/Comentário)

O falante focaliza o “tema” sobre o qual irá fazer comentários, colocando-o no início da frase.

Ex.: Fulano, eu vi ele ontem.  Seus sapatos, coloquei eles no armário.

Filhos, melhor não tê-los.  Esse terreno, foi uma longa história.

  1. OMISSÃO DO COMPLEMENTO DO VERBO (objeto nulo)

Diferentemente de outros idiomas, o  falante brasileiro omite o complemento das formas verbais que já estão explícitos anteriormente.

Ex. Você  viu esse filme? Vi.  “Não reclamo da vida, apesar de sofrida consigo levar.”

3.FORMA VERBAL ANALÍTICA  –  amanhã vou viajar (viajarei),  ele já  tinha saído (saíra), a festa está tendo lugar (tem lugar)

  1. COLOCAÇÃO DO PRONOME OBLÍQUO

Ex.:  Me dá um cigarro.  Lhe agradeço muito.

  1. ELIMINAÇÃO DAS CONSOANTES EM FINAIS DE PALAVRAS

Ex.: Vamos voltar = vamo voltá, temos que ir = temo que i.

  1. SIMPLIFICAÇÃO SINTÁTICA

Ex.:  As coisas (de) que eu gosto. O homem (cujo) que o  sapato é branco. A casa (em) que eles moram.  (A) Que horas ele chegou?

  1. FORMAS EM GERÚNDIO

Ele vive falando nisso.  (Port.: Ele vive a falar nisso). Estou trabalhando.

  1. USO DA PREPOSIÇÃO “EM” com verbos de movimento.

Cheguei (a) em casa.  Vou (ao) no cinema. O filme chegou (ao) no fim.

  1. PRONOME PESSOAL “TU” conjugado na terceira pessoa

Tu vai ao cinema hoje? Que horas tu chegou em casa?

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E como apenas falamos das palavras que “sumiram” ou estão em vias disso, consideremos também as milhares de palavras que se adicionam ao idioma, renovando nossas formas linguísticas. Pode-se arriscar dizer que, daqui a alguns anos, nossa língua estará completamente mudada.

Sobre aquisição/invenção de novas palavras, transcrevo a noticia constante da página da revista Veja Digital, de 18.03.2020:

De acordo com o Instituto Leibniz de Língua Alemã, uma organização que documenta a língua há décadas, a lista de novas palavras criadas no primeiro ano de pandemia já inclui mais de 1.200 termos. (Veja digital)

E ENTÃO, ESTAMOS FALANDO ERRADO, OU SEGUIMOS UM PROCESSO?

 

 

 

 

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