David Gonçalves
Cadeira 3
Patrono Auguste de Saint-Hilaire
Fundador Brasil Görresen
DAVID GONÇALVES [1952] nasceu em Jandaia do Sul, PR, e desde 1974 reside em SC. Professor universitário e consultor de empresas, ministra cursos e palestras sobre literatura, comunicação, liderança e marketing. Filho de pequenos agricultores, conviveu com os trabalhadores rurais e, dessa convivência, mantida até hoje, extrai a sua força literária. O seu primeiro livro [1972], As flores que o chapadão não deu, foi recolhido pelo regime militar e permaneceu 16 anos na gaveta. Atualmente, tem sucessivas edições.
Recebeu o prêmio OTHON GAMA D’EÇA, 2008, da academia Catarinense de Letras, pelo conjunto de suas obras. Segundo Gilberto Mendonça Teles, da PUC-RJ, “No panorama da literatura brasileira, a obra de David Gonçalves ocupa lugar especial e de relevo; é uma das mais importantes da atual ficção, estando no mesmo nível de escritores consagrados.”
Recentemente, publicou cinco histórias infantojuvenis: A vaca no quarto andar, A mulher barbada, Adorável Margarida, Sapatos de capim e Por seus olhos. A Literatura tem sido seu ideal valioso desde a infância.
A crítica literária considera O SOL DOS TRÓPICOS (romance), GERAÇÃO VIVA (contos) e SANGUE VERDE (romance) os pontos fortes de sua obra. Neste ano de 2017 lançou o romance PÉS-VERMELHOS.
Diversas teses de mestrado e doutorado já foram realizadas sobre sua obra, em especial Geração viva, O sol dos trópicos e Sangue verde.
Em 2015, o ensaísta e poeta José Fernandes publicou um livro – A arte de narrar de David Gonçalves – no qual examina os contos e romances do autor num panorama completo.
DAVID GONÇALVES tem como princípio não participar de concursos literários.
E não havia lua no céu de Quadrínculo (David Gonçalves)
E NÃO HAVIA LUA NO CÉU DE QUADRÍNCULO David Gonçalves Fomos no casamento: o pai, Eufrásio, Érica e Adolfo. Havia muita gente na festa. Colonos reunidos. As barracas de lona cobriam os terreirões de café. O noivo era magro e alto; a noiva, baixa e gorda. O sanfoneiro, acompanhado do pandeiro e do […]
O andarilho (David Gonçalves)
O ANDARILHO David Gonçalves Chegou um andarilho aqui em casa outro dia. Vinha do sertão, lonjuras, onde Judas tinha perdido as botas. Perto da varanda, parou, medindo os passos. Na testa, a poeira das estradas amarelas, bastante suado; nas costas, um saco roto, enfarelado. Barba vermelha, endurecida, encaracolada e suja, podendo ter piolhos. Olhos […]
Discurso de Apresentação do Acadêmico Ernani Buchmann (David Gonçalves)
Discurso de Apresentação do Acadêmico Ernani Buchmann David Gonçalves Os Estados do Paraná e Santa Catarina sempre tiveram, na literatura, um relacionamento de corpo e alma. Há escritores paranaenses que adotaram Santa Catarina como terra natal, do qual me incluo. Há escritores catarinenses que adotaram o Paraná como terra promissora. É o caso […]
As três verdades (David Gonçalves)
AS TRÊS VERDADES David Gonçalves – Filho, vamos dar um passeio. Era domingo de belo sol. Mas eu estava cinzento, nublado, aborrecido. Completara 16 anos e queria ser alguém na vida, mas, naquele buraco, o que me esperava era foice, enxada e força física. Meu destino estava selado: teria que ser agricultor como […]
Ac. David Gonçalves leu “Galo de Ouro”, de Juan Rulfo
Ac. David Gonçalves leu “Galo de Ouro”, de Juan Rulfo. Há décadas eu li PEDRO PARÁMO, de Juan Rulfo, escritor mexicano. Uma novela obra-prima. Por esses dias, li GALO DE OURO, outra novela, também fabulosa. O tema é sobre rinhas de galos e suas paixões. Tema que fez escrever há vinte anos uma novela, […]
O trem de Jandaia faz parada em Quadrínculo (David Gonçalves)
O TREM DE JANDAIA FAZ PARADA EM QUADRÍNCULO conto poema David Gonçalves Ah, mana Chica, o trem de Jandaia está passando e quero levar você na estação de Quadrínculo. Lá sou David, o rei do nada. Lá te amarei eternamente e todos os dias iremos ver a ciranda do Sol nascer, com a […]
Discurso de recepção da professora Taiza Mara Hauen Moraes (David Gonçalves)
Discurso de recepção da professora Taíza Mara Hauen Moraes Prezados Senhores, Há tempo a vida da professora Taiza e a minha se cruzam. Na década de 80, eu era professor de literatura brasileira e teoria literária na FURJ, hoje Univille. Tive que deixar a universidade para cuidar de negócios, por motivos de […]
Te espero do outro lado (David Gonçalves)
TE ESPERO DO OUTRO LADO [conto] David Gonçalves Na mesma noite em que Tonico Cospe-Fogo morreu pela primeira vez, havia um velório na casa da fazenda. Um peão picado por uma cascavel. Meia dúzia de pessoas guardava o finado e já passava das onze horas, perto da meia noite. Foi, então, que a polícia […]
Natal na casa dos leprosos (David Gonçalves)
NATAL NA CASA DOS LEPROSOS David Gonçalves O sol de dezembro caía brutalmente sobre as ruas e inundava as casas baixas, de telhados enegrecidos, com luz ofuscante, ardente e forte. Subia rua acima, exatamente quando o sol estava a pino, o jovem operário Germano, com seus instrumentos de trabalho a tiracolo – alicate, […]
Loucuras incertas do amor (David Gonçalves)
LOUCURAS INCERTAS DO AMOR David Gonçalves Uma reunião. Improviso. Sábado à tarde. Nuvens pesadas cobriam o céu. Através da estreita janela, via-se a tormenta se formando. A nora e o genro ficaram na sala. Os netinhos brincavam no gramado. A filha e o filho, quarentões, puxaram o pai para os fundos, no quiosque. Sérios. […]
O estranho voo de Marília (David Gonçalves)
O ESTRANHO VOO DE MARÍLIA David Gonçalves Na noite anterior, sábado, a cabrita Neguinha, desapareceu do cercado logo no entardecer. Turíbio, quando percebeu, saiu à procura, riacho e serras, e desanimado, pela meia-noite, estava de volta, sem a cabrita. O leite para os filhos era da Neguinha. Domingo ansioso. A toda hora espiava […]
Quem matou o rio? (David Gonçalves)
QUEM MATOU O RIO? David Gonçalves O rio nasceu. Água límpida, brilhante, gostosa. Desceu encosta abaixo molhando a terra, cheio de curvas, pedras, plantações, serpenteando. Passava por um trigal, um milharal, um pomar, uma mata virgem, uma cachoeira. Era pequenino. Mas foi crescendo, crescendo. Os moleques tomavam banho nele escondidos das mães, as mulheres – […]
Chuva de arroz nas serras (David Gonçalves)
CHUVA DE ARROZ NAS SERRAS David Gonçalves Chamavam-se Salíndeo e Ornélias. Iam-se casar na capelinha que nem padre tinha, entre as montanhas. O vigário, de vez em quando, aparecia por lá, mais como missionário. O arraial era um amontoado de casas pobres, cobertas de sapé ou de tabuinhas serradas desiguais. Agosto ia pelo meio; o […]
Tropeços do amor (David Gonçalves)
TROPEÇOS DO AMOR [continho] David Gonçalves Se amavam. Desde criança. Pais não queriam. Interesses. Fizeram de tudo pra azedar. Azedaram. Aborrecido, José se foi. Pra longe. Lonjuras curam. Mas não curou. Remediou. Maria também ficou sem chão e teto. Casou. Primo rico. Amor se cria? Viajou. Tinha dinheiro. Lá no fundo, o José. O tempo […]
Angélica e seus três amores (David Gonçalves)
ANGÉLICA E SEUS TRÊS AMORES David Gonçalves O que se deu, muitas suposições. A cidade ferveu. Angélica era casada com bom marido. Mais do que bom. Juntos, dois filhos. Aos quarenta anos, vinte de casada, Angélica disse ao marido: Isto me cansa. O que te cansa? Esta vida no caminho dos ratos. Acordava para a […]
O tempo guarda os cadáveres (David Gonçalves)
O TEMPO GUARDA OS CADÁVERES David Gonçalves O TIO MANQUITO ERA ALEGRE, espírito aberto. Mais jovem que o pai. Manquejava, a perna esquerda mais curta. Quando fiquei órfão, aos oito anos, ele cuidou de mim e da mãe. Uma vez por semana aparecia em casa, com compras providenciais. Contava histórias, e ria, ria muito. Era […]
Sertão Jandaia (David)
SERTÃO JANDAIA David Gonçalves O cincerro tilintou – tlim-tlim-tlimmmm – na tarde morna. Moleques saíram à porta das casas e as mocinhas na janela. A molecadinha se espicaçou nas ruas tortuosas renteando as cercas. A vila, boca de sertão, se acordou com a chegada inesperada do tropeiro e seus animais. Sob o chapelão de palha, […]
Cadê as armas vovô? (David )
CADÊ AS ARMAS, VOVÔ? VOVÔ PERETA estava impossível. Contou histórias de lutas, de guerras, de cenas grotescas da mulher barbada no circo. Por final, disse: – Eu tenho muitas armas! Os quatro meninos, extasiados, queriam ver as armas. Curiosidade rói como soda. – Não são armas comuns. Especiais, de longo alcance. Os meninos queriam […]
Casa na praia (David)
Casa na praia David Gonçalves Os dois amigos proseavam na mesa do bar num fim de tarde. — Onde passará as festas? — Na praia, Quero ver a queima de fogos. — Você tem casa na praia? — Tenho. Não é lá grande coisa, mas o pobre merece algumas benesses… — Só de ouvir falar […]
O tempo guarda os cadáveres (David)
O TEMPO GUARDA OS CADÁVERES O tio Manquito era alegre, espírito aberto. Mais jovem que o pai. Manquejava, a perna esquerda mais curta. Quando fiquei órfão, aos oito anos, ele cuidou de mim e da mãe. Uma vez por semana aparecia em casa, com compras providenciais. Contava histórias, e ria, ria muito. Era casado: mulher […]
Desencontros (David)
DESENCONTROS miniconto David Gonçalves Algo irreparável acontecera. Nem José, nem Maria conseguiam entender. Estavam sós, o prazer de viver sumira. O sabor da vida acabara. As cores do arco-íris reduziam-se ao cinza. José se perguntava: “Onde errei? – não obtinha resposta. Maria se perguntava: “Por que tudo desabou?” – também não encontrava razão alguma. Haviam-se […]
Mulheres – sacos de pancadas
MULHERES – SACOS DE PANCADAS? David Gonçalves Antes e depois de Lindalva. Por que antes? O que houve depois? Mulheres, em Quadrínculo, apanhavam dos homens por um cisco. Eles batiam com gosto e se vangloriavam. Sovavam de relho, de cinta, de bainha de facão. Ouviam-se gritos de socorros na calada da noite. Mas os vizinhos […]
Quarenta anos de velório (David)
QUARENTA ANOS DE VELÓRIO [conto para Finados] DAVID GONÇALVES Confesso que saí aterrorizado de uma palestra de um certo professor de filosofia. Ele dissera, em tom seco e abrupto: — As pessoas, em geral, morrem em torno dos trinta anos e são sepultadas por volta dos setenta. Nunca tinha recebido um tiro no peito. Mas, […]
Tropeços do amor (David)
TROPEÇOS DO AMOR David Gonçalves Se amavam. Desde criança. Pais não queriam. Interesses. Fizeram de tudo pra azedar. Azedaram. Aborrecido, José se foi. Pra longe. Lonjuras curam. Mas não curou. Remediou. Maria também ficou sem chão e teto. Casou. Primo rico. Amor se cria? Viajou. Tinha dinheiro. Lá no fundo, o José. O tempo passou. […]
Oh mundo estranho (David)
Oh mundo estranho Hoje fui na mercearia-bar, que há vinte anos tenho ido. Tomo uma pinga e uma cerveja vagabundagem, que vivo quase à míngua. Depois roubo um jornal vencido e vou correndinho pra casa, e entro no banheiro, e satisfeito limpo a bunda com o jornal velho. Hoje, fiquei abismado. Não há mais jornal, […]
O boi-fria que espia a chuva e sofre (David)
O BOIA-FRIA QUE ESPIA A CHUVA E SOFRE David Gonçalves Chovia, chovia e chovia. Abdias olhava a chuva oblíqua com olhos cravados nos campos de algodão e nas fazendas de cana. Sentia na boca um gosto enferrujado de moeda antiga; no corpo, enquanto olhava a chuva, uma sensação de coisa quebrada. Apertou um maço de […]
Voo de galinha (David)
VOO DE GALINHA [conto] David Gonçalves Fazia um calor capaz de chocar ovos. No teto da sala de aula, dois ventiladores roncavam e o vento que batia em nossas cabeças era quente, asfixiante. O professor Virgílio discursava; nossas mentes juvenis divagavam, modorrando. A gente não via a hora de botar os pés nas ruas, mas, […]
📘Recepção de Elizabeth Fontes (David)
Apresentação da escritora Beth Fontes na Academia Joinvilense de Letras Desde a minha adolescência que tenho relações literárias com os criadores de Minas Gerais –Bernardo Guimarães, Guimarães Rosa, Mário Palmério, Drumond de Andrade e outros grandes escritores mineiros. Terra fértil, portanto. Agora, tenho a honra de apresentar Beth Fontes, também mineira. Aliás, não é a […]
Adeus, companheiros (David)
ADEUS, COMPANHEIROS Ontem à noite, Gabriel, o dono da mercearia-bar Entre Amigos, homem amado, respeitado, mas solitário, depois do último cliente sair, abaixou as portas, conversou tristemente com o papagaio na gaiola, e escreveu a derradeira mensagem aos amigos: “Boa noite, companheiros! Estou com Covid! Se cuidem. Por isso fiquei arredio, distante, para […]
O cuidador de velhos (David)
O cuidador de velhos Estava, naquele tempo, roendo ossos. Na miséria, cheio de dívidas. Abandonara a Universidade, os bolsos vazios, e o álcool roía-me o estômago. Curitiba parecia povoada de fantasmas. Então, pelo mês de agosto, o telefonema de um primo que morava em São Paulo: “Olha, sei que você está precisando. Lá, em Quadrínculo, […]
Covid na balada (David)
COVID NA BALADA DAVID GONÇALVES www.davidgoncalves-escritor.com O jovem não se aguenta. Está cansado de ficar em casa. Vai na balada clandestina. Bebe, dança, fode, briga, se exaure. Que se dane o vírus! Vodca na goela, cachaça na goela, que vírus aguenta tamanho torpedo? Chega em casa, daquele jeito! Exausto, dormindo em pé igual vaca, cheiro […]
Alguma coisa aconteceu lá (David)
ALGUMA COISA ACONTECEU LÁ A NOTÍCIA DA MORTE DE TEREZA ARRUDA se espalhou rapidamente pelo povoado e causou profunda impressão nos seus habitantes. A história dela estava bem viva na memória de todos. Fora uma benfeitora, sem dúvida: ajudara muitos. Pertencera à irmandade Coração dos Aflitos, da igreja, e estivera presente nas obras de caridade […]
O cheiro do Outro (David)
O cheiro do Outro David Gonçalves Havia acontecido. Simplesmente acontecido. O telefone tocou na hora em que ele estava preparando um drinque, passava das oito horas da noite. Estava para beber, levantara o copo, parou, escutou, e abaixou o copo. Foi atender o telefone. – Alô, aqui é o Toríbio. – Toríbio – disse ela, […]
A festa de Natal de Senhorinha (David)
A FESTA DE NATAL DE SENHORINHA Senhorinha ia completar 90 anos. Muito falada e pouco conhecida. Vivia como sombra errante. Morava distante de Quadrínculo, na fazenda herdada de seus pais, e, há anos, ninguém a via pela cidade. No imenso casarão, ela e o empregado Doriva, também envelhecido, que fazia as compras, de vez […]
Vim pegar minhas coisas (David)
VIM PEGAR MINHAS COISAS David Gonçalves Ninguém sabia por que ela não se casara. Três irmãos e cinco irmãs se casaram. Menos ela, Olívia. Não era bonita, nem feia. Alguns pretendentes apareceram, mas não passaram por seu crivo. Quando os pais morreram, passou a morar só na vasta casa. Estava com 40 anos e […]
O diabo chupando mangas verdes e rindo (David)
O DIABO CHUPANDO MANGAS VERDES E RINDO DAVID GONÇALVES Quando Deus dá um dom, devemos exercê-lo. A gente, entretanto, se descuida. Deus dá, o Diabo tira. De uma ninhada de dez, pobrezinhos, o caçula Joãozinho viveu por destino: sujeira, fome e vermes no meio do garimpo selvagem, por vezes comendo terra do barranco. De uma […]
Ac. David leu “Shosha”, de Isaac Singer
SHOSHA, romance, Isaac Baschevis Singer, EDITORA Francis. DAVID GONÇALVES “Shosha”, o romance preferido por Isac Bashevis Singer, é uma contundente e lírica história de amor passada na Varsóvia judaica no princípio dos anos 1930., com suas proibições e superstições, entremeada com uma vida moderna, com avenidas novas, bem iluminadas, liberdade sexual, células comunistas e ricos […]
O lugar menos sexy do mundo (David)
O LUGAR MENOS SEXY DO MUNDO [conto] David Gonçalves – Academia Joinvilense de Letras Maria estava furiosa. – Se estou fria, claro que estou. Fria, não. Estou uma geladeira. Um freezer! Por que me olha com essa cara de bobo? – Eu só quero fazer carinho… – Ouça a máquina de lavar roupa… – Mas […]
Ac. David leu “A redoma de vidro”, de Sylvia Plath
A REDOMA DE VIDRO, Sylvia Plath, editora Folha de São Paulo David Gonçalves Um romance mediano. Parece que foi escrito para psicólogos e psiquiatras. É um mergulho indigesto na depressão. Nada aconselhável para quem deseja e quer ver e perceber as maravilhas do mundo. Sylvia Plath [1032-1963], também conhecida como poeta, se suicidou um mês […]
Espalhe as cinzas num puteiro (David)
ESPALHE AS CINZAS NUM PUTEIRO David Gonçalves A boca estava seca como se tivesse engolido um punhado de areia. Engolia o cuspe seco que não descia na goela. As mãos, Deus, estavam geladas como as mãos de afogados. Ela segurava o pote de cinzas. Estava no meio do mulherio que exalava perfume variado e barato, exibindo […]
A morte espia pelo rabo (David)
A MORTE ESPIA PELO RABO David Gonçalves – Academia Joinvilense de Letras Velhos e loucos peidam muito. Peidam fantasticamente. Não sei por que, mas peidam. Os loucos peidam e se divertem; os velhos, quase todos se aborrecem, constrangidos. Mas os loucos acham graça e riem pra valer. Os velhos, talvez, se chateiam por causa da […]
O menino que não tinha umbigo (David)
O MENINO QUE NÃO TINHA UMBIGO David Gonçalves – Academia Joinvilense de Letras – MÃE, não vou mais na escola. Tenho ódio daquela gente. Prefiro estudar aqui em casa. – Ah, não, meu filho, você vai, sim. Não vem com história. Trabalho como escrava na padaria e você fazendo boquinha. – Eu não vou, já […]
Desde que eu existo (David)
DESDE QUE EU EXISTO David Gonçalves Escorre saliva da boca murcha de minha mãe. A boca parece uma teia de aranha. Boca murcha e torta, o pescoço todo enrugado. Pescoço curto e grosso, sustentando a cabeça de cabelos brancos e ralos. Um dia, ela foi bonita. Tinha uma vasta cabeleira preta. Antes de eu […]
“Deixe tudo, pai” (David Gonçalves)
DEIXE TUDO, PAI Viviam felizes. Nem percebiam o tempo. Envelheciam e se amavam. Um dia, puft, fazendo o almoço, um mal súbito, a mulher morreu. Assim, do nada. Restaram a panela e a colher no piso. Assim. O susto. O abismo. O nada. Procedeu-se o enterro. Não havia lágrimas. Só um cansaço esquisito, o ssss […]
Mais um dia (David)
MAIS UM DIA David Gonçalves – Academia Joinvilense de Letras Seis e meia da tarde. O sino já tocou. Blém-blómmm. Abro a porta do casebre, tiro o boné, coloco-o pendurado no cabide de madeira. Me espio no espelho enferrujado do guarda-roupa. Sou só fuligem. Tiro o macacão, pego a toalha, entro debaixo do […]
A Páscoa de Clarice (David)
A PÁSCOA DE CLARICE Amavam o avô. Ansiavam por vê-lo. Mas, naquela Páscoa, tudo mudou. Pelo menos, para Clarice. Chegaram ao sítio do avô na quinta-feira à noite – o pai, a mãe, Felipe e Clarice. Foram recebidos com alegria incontida. Vovô Terêncio e vovó Teza saltitavam como lebres pela casa. “Já é tarde. […]
Dá pra abaixar o som? (David)
DÁ PRA ABAIXAR O SOM? [conto] David Gonçalves – Academia Joinvilense de Letras O VELHO bateu palmas no portão. Uma. Duas. Três vezes. Um dos jovens, taludo e tatuado, veio ao portão. “Dá pra abaixar o som?” Nem dava pra ouvir. Tum, Tum, Tum. O som ensurdecedor ribombava nos tímpanos. Quebrava […]
Adeus e boa sorte (David)
ADEUS E BOA SORTE [conto] David Gonçalves Partículas de pó e de fibras de algodão dançavam no mormaço da tarde. Carretas carregadas de fardos chegavam, manobravam e descarregavam, depois iam embora, e no ar abafado ficava o zunido dos descaroçadores de algodão expelindo delgadas e finíssimas fibras flutuantes no mormaço. Da varanda, Elisa olhava o […]
Paixão sem controle (David)
PAIXÃO SEM CONTROLE [conto] David Gonçalves – Academia Joinvilense de Letras De manhã, impecável, Alfredo se pôs diante do espelho. Ainda um belo homem, embora grisalho: elegante, sem barriga, cinquentão. O estilo é tudo, disse, sentando-se para o café. Ah, que saudades dos tempos que lia os jornais e revistas impressos… Jornais e revistas haviam […]
Por causa de uma piranha (David)
POR CAUSA DE UMA PIRANHA [conto] David Gonçalves NAQUELE DIA, me achava oco e desprezível. Havia terminado um conto, ainda não tinha começado outro. Caçava assuntos como se caça borboletas. Vagueava pelo quarto alugado feito zumbi. Estava louco para sair e tomar uns tragos. Anoitecia. Então, o telefone tocou. Minha ex-mulher. Notícia ruim. O irmão […]
Ah, como invejo Tolstói (David)
AH, COMO INVEJO TOLSTÓI David Gonçalves – Academia Joinvilense de Letras FIQUEI EUFÓRICO. Ninguém acreditou. O cara – o gênio Ramon Gonzales – não dava entrevista. Há anos se recolhera na fazenda que herdara de seus pais e, quanto mais recluso, mais famoso ficava. Não respondia cartas, não atendia telefone, não se deixava […]
Ac. David leu “O amor de uma boa mulher”, de Alice Munro
O AMOR DE UMA BOA MULHER – Alice Munro, Editora Companhia das Letras. Alice Munro, canadense, 1931, sempre se dedicou ao conto e ganhou o Nobel de Literatura em 2013. Foi a primeira autora dedicada exclusivamente a contos a receber o prêmio, e seu talento é tamanho que ela frequentemente é comparada a Tchekov. É […]
As Flores, ao vivo (David)
AS FLORES, AOS VIVOS (David Gonçalves) Hoje, não foi fácil. Acabo de chegar do crematório. Vi o meu amigo João Simões virar cinza. Domingo de tarde, ele pintou a própria cabeça com tinta vermelha, despiu-se no fundo do quintal, enfiou uma cenoura de bom tamanho no rabo e se enforcou, no galho da goiabeira. Sua […]
Se o caminhão de lixo não tivesse atrasado (David)
SE O CAMINHÃO DE LIXO NÃO TIVESSE ATRASADO David Gonçalves – Academia Joinvilense de Letras “POR DEUS! Por que estes bostas ainda não passaram? O dia já está claro, o mormaço encalacra até a alma. E os canalhas ainda não passaram. O suor está colando.” Carolino referia-se ao caminhão de lixo. Acordava sempre às cinco […]
Pra além dos campos de soja (David)
PRA ALÉM DOS CAMPOS DE SOJA – O menino não se queixa mais – disse a mulher, embalando o filho no colo. Olhei para a mulher, olhei para a chuva sem tréguas, olhei para o campo amarelo de soja que se estendia a nossa frente. Há três dias a gente estava ali, naquele armazém perdido […]
Virada de ano (David)
VIRADA DE ANO David Gonçalves – Academia Joinvilense de Letras – MAIS UM COPO, VOVÔ! Esta berita é das boas! O velho dá uns passos bambos. Ri por qualquer coisa, os dentes falhos. – Se quero! Arre, não é todo dia que se bebe assim. Eu mereço! O genro – sorriso desnaturado entortando os lábios […]
Certa noite de Natal (David)
CERTA NOITE DE NATAL Bela, belíssima, cabelos negros da noite, azeviche, olhos de jabuticaba – Esmeralda, a filha do agricultor Leonardo. Riso tão puro como a fonte murmurante. Dos cinco filhos, era a joia. Dava-lhe alegrias e apreensões. Os moços da gleba a disputavam acirradamente. Nos bailes e quermesses, as outras moças mofavam, magoadas. Esmeralda […]
O último defunto vigia até o último chegar (David)
O ÚLTIMO DEFUNTO VIGIA ATÉ O PRÓXIMO CHEGAR David Gonçalves Ontem, fui visitar a aldeia onde nasci. Cadê o povo daqui? Fiquei perguntando, um pouco assustado. Foram pra cidade, responderam. Fazer o quê? Sabe lá Deus! Ruelas desertas, casas envelhecidas, algumas abandonadas. Entrei na barbearia. O barbeiro não estava. Um moleque cor de cuia usada me disse: […]
República de estudantes (David)
REPÚBLICA DE ESTUDANTES – Tem um homem no portão. Quer falar com você. Fechei o livro. Diz que não estou. Estou lendo. Preparo as provas finais. Já disse que você está. Santa paciência, mulher, vá lá e diz que se enganou. Vou nada, ela diz, irritada. De má vontade, vou atender. – O que é? […]
Ac. David leu “A casa do silêncio”, de Orhan Pamuk
Prêmio Nobel de Literatura em 2006. Nasceu em Istambul em 1952. Um dos primeiros autores a falar abertamente sobre o massacre de armênios promovido pela Turquia no início do século XX. “A casa do silêncio”, romance pródigo em passagens comoventes, hilariantes e por vezes amedrontadoras, pulsa com o entusiasmo próprio de um trabalho de […]
Quem matou o rio?
O rio nasceu. Água límpida, brilhante, gostosa. Desceu encosta abaixo molhando a terra, cheio de curvas, pedras, plantações, serpenteando. Passava por um trigal, um milharal, um pomar, uma mata virgem, uma cachoeira. Era pequenino. Mas foi crescendo, crescendo. Os moleques tomavam banho nele escondidos das mães, as mulheres – ricas, pobres e miseráveis – lavavam […]
? “Natal na casa dos leprosos”, de David Gonçalves
Natal na casa dos leprosos David Gonçalves O sol de dezembro caía brutalmente sobre as ruas e inundava as casas baixas, de telhados enegrecidos, com luz ofuscante, ardente e forte. Subia rua acima, exatamente quando o sol estava a pino, o jovem operário Germano, com seus instrumentos de trabalho a tiracolo – alicate, martelo, formão, […]
Mas isso dá dinheiro?
OBSERVAVA o pai lavrando a terra. A vida inteira. Envelhecera no cabo da enxada e no arado. Desbravara o vale. Enfrentara onças, cobras, doenças. Entendia a terra. Não perdia tempo em questões filosóficas. O pai era um pé de café. Misturava-se com o cafezal verdejante. Em seguida, começou a observar os pássaros. Esvoaçavam em bando. […]
Prédio da esquina ou do meio da quadra
Quando chegou à casa do professor, do portão, ouviu os sons do piano. Anoitecia rapidamente. Bateu à porta e o professor, deixando o piano, veio prontamente recebê-lo. O longo e magro crânio por baixo de um chapéu de pano deixava-o parecido com um réptil encapuzado. Os olhos tinham, também, um brilho e uma expressão de […]
É o amor, seu estúpido!
Ah, esse amor dos diabos, que faz tantos estragos nas pessoas! Esse amor que nos dá vida e, ao mesmo tempo, coloca-nos em um inferno abaixo do chão. Esse monstro, que queima e devora, e liquida. Essa paixão proibida: um inferno a crepitar em tantas cabeças, que devora os sensatos e os lança num abismo […]
Maria Sucuri
{Do romance Sangue verde} HÁ QUINZE ANOS, longe do garimpo, num povoado às margens do rio e encravado na selva, entre o Cerrado e a Amazônia, onde madeireiros avançavam destruindo a floresta, um fato assombroso se dera… O rio corre tranquilo no meio da densa floresta, com águas turvas e arenosas, quietamente. Os jacarés […]
Meu tio Fonseca
FOMOS VISITAR O TIO FONSECA. Uma visita bárbara. Ele morava na cidade vizinha, numa propriedade distante, entre morros e um riacho de águas turvas. Era irmão do pai. O fordeco velho gemia no barro mole. Em troca de uma dívida antiga, o fordeco veio parar em nossas mãos. Tio Fonseca estava bêbado. Sentado no varandão, […]
Um pra mim, um pra você
OLHOU O NEGRO À SUA FRENTE. Estava espantado. Os olhos pareciam duas bolas de gude enormes. Passava da meia-noite. Nas ruas da cidadezinha reinava o silêncio. Vez ou outra, cães uivavam e gatos no cio miavam enlouquecidos. Do resto, nenhuma vivalma pelas ruas. Cirilo, o policial de plantão, já estava enfiado debaixo dos lençóis. Eram […]
Leonardo, Bem-vinda e a solidão
Havia, todo ano, uma feira livre de animais na cidade. Ali vinham grandes criadores de outras regiões e também agricultores familiares. Os organizadores, por diversas vezes, tentaram retaliar os pequenos criadores e deixar a feira àqueles que se dedicavam aos melhoramentos genéticos. Mas não tiveram sucesso. Assim, todo ano, entre os reis do gado, ali […]
Chiquinho preto e o colecionador de rabos secos
Chiquinho Preto ria muito, tanto ria que babava, os fios da baba escorrendo pelo queixo pontudo com rala barba. Por qualquer coisa, ria. Para ele, o mundo se mostrava alegre. O povo da cidade já se acostumara com as risadas desabridas. Achava graça até nos velórios e era severamente corrigido. Ria, ria e ria. Até […]
Os meninos do Quadrínculo
Chegou a Quadrínculo um pessoal inteligente, de alguma universidade famosa, sabe-se lá de onde. Cinco homens de rostos circunspectos e três mulheres quietas e compenetradas. Qualquer habitante, por mais descuidado, logo percebia que, entre essa gente estranha, havia um guru, senhor de barba e cabelos brancos, e os demais eram seus seguidores. Vinham em prol […]
David Gonçalves – Recepção por Hilton Görresen
Senhor Presidente, senhores componentes da mesa, colegas acadêmicos e demais amigos que nos honram com sua presença: Quando vim para Joinville, na década de 1970, tornei-me incontinente associado de nossa Biblioteca Pública. Numa de minhas visitas a essa entidade, a diretora, Selma Carneiro, me falou: esteve aqui um jovem dizendo-se escritor e deixou um exemplar […]
David Gonçalves – Discurso de posse
Prezados Senhores, Boa noite! Pertencer à Academia era um sonho, quase inatingível. Hoje, realidade. Primeiramente, quero saudar o patrono desta cadeira: SAINT-HILAIRE. Um cientista. Augustin François Cesar Provençal de Saint-Hilaire, nacido em Orleans, França, a 4 de outubro de 1799 e falecido em Turpinière, Loiret, em 1853. Garnde estudioso de botânica, curioso para ver as […]